Jojô Coelho e a corrida contra a democracia

Jojô Coelho e a corrida contra a democracia

Filmes que já foram vistos

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      No carnaval, depois de sambar quase estaticamente, no meu característico estilo minimalista e pós-moderno, fui ao cinema. Vi “Jojo Rabbit”, de Taika Waititi, um dos premiados do Oscar. Eu não dou a menor importância para o Oscar, que já consagrou muito filme ruim e continua sendo uma escolha majoritária de homens brancos e ricos. Acho a cerimônia de entrega dos prêmios tão excitante quanto uma formatura. Os discursos dos premiados são tão criativos quanto uma entrevista de ministro do desenvolvimento na Voz do Brasil. A sala do cinema estava vazia. No lado de fora, na velha e boa Cidade Baixa, multidões vagavam em busca de diversão seguidas por policiais militares salivando.

      Gosto de filmes que mais sugerem do que explicitam. Esse negócio de, agora morrem 57 esfaqueados, com a imediata aplicação do roteiro, me deixa com ânsia de vômito. Sou sensível. Já me bastam os assassinatos no Ceará. Além disso, o que me interessa são as histórias contadas. Pouco se me dá se o plano é sequência, como em “1917”, ou não. Relendo “A festa do bode”, de Mario Vargas Llosa, reafirmei a minha posição: para fazer um grande livro o fundamental é ter uma grande história para contar. Presto atenção em detalhes bobos. Se “Joker”, termo usado mundialmente, foi traduzido para o nosso Coringa, por que “rabbit” não foi traduzido para coelho? Não vi “Jojo Rabbit”. Vi “Jojô Coelho”. Sempre serei um Policarpo Quaresma que se perdeu das páginas de Lima Barreto e veio parar em Porto Alegre por acaso. “Jojô Coelho” é um belo filme, muito melhor do que “Parasita” e “Coringa”.

      Um menino de dez anos, em pleno delírio nazista, adora Hitler e, em imaginação, conversa com o ídolo. É um fanático doutrinado na escola para amar o “Führer”. A pegada é ousada, diferente, arriscada. Funciona. O guri vai conviver com uma protegida da sua mãe, uma menina judia escondida em casa. Um filme sobre nazismo evidentemente não fica na mera sugestão. Explicita. A violência está muito presente. Só não é o foco da obra. O centro está na relação, na diferença, na alteridade, em como o outro é demonizado, narrado como perigoso, construído para ser visto como uma ameaça. Filmes sobre crianças para gente grande sempre fazem um pouco de chantagem sentimental. No caso, a dose é aceitável. Aos poucos, a lucidez infantil expõe a estupidez adulta.

      Depois de muito romantismo rastaquera e de muito filme de ação gratuita, o cinema anda concentrado, engajado, crítico, interessado nos rolos que afetam o nosso cotidiano e alimentam nossa intolerância. A indústria cinematográfica é capaz de vender qualquer coisa, até aquilo que revela a sua podridão. Em tempos de ódio ideológico e de polarização, “Jojô Coelho” é mais do que um divertimento. No carnaval, enquanto a tensão subia nas ruas, numa cidade em que fazer festa à noite com muita gente parece proibido, eu me recolhi à solidão do cinema para sonhar com paz, compreensão e respeito à diversidade. Saí de lá dançando. Só que tão lentamente que ninguém percebeu. Uma pena.

Enquanto isso, no Brasil, Jair Bolsonaro e seus generais incitam o povo contra o parlamento. A democracia balança. Já vimos esse filme.


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