Keroauc e eu

Keroauc e eu

Divagações sobre a forma literária

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Eu gostaria de ter sido Jack Kerouac. Melhor, eu gostaria de ter escrito alguns dos seus textos. Não por ele escrever melhor do que eu. Não acho. Mas por terem sido grandes ideias que fizeram grandes livros. Ao menos, sejamos claros, um.

Escrever melhor do que eu, só Michel Houellebecq.

Sou modesto. A provocação é gratuita.

Jack Kerouac também era delirante.

Ele nasceu em 12 de março de 1922 e morreu em 21 de outubro de 1969. Há 50 anos. Sou louco por datas redondas. Não sei de onde vem a ideia de que datas assim são redondas. Deve ser por causa do zero. Kerouac era louco. Drogou-se muito. Fazia parte do espírito da época. Eu, se fosse ele, dispensaria essa parte. Ficaria com os livros. Ele fez parte da geração beat. Essa turma era criativa, vanguardista, doida, contracultural, poética e determinada a viver de outra maneira.

      A geração beat, a contracultura, o rock, os Beatles, os hippies, a minissaia, os cabelos compridos e as ideias longas levaram a maio de 1968, que mudou o mundo. Somos o que os jovens daquela época fizeram por nós. Eles e a pílula anticoncepcional. A pílula ajudou a libertar as mulheres e a implodir o patriarcalismo. Kerouac esteve, de algo modo, no meio desse tempo de convulsão, de balbúrdia, de emancipação e de irreverência. Escreveu “Pé na estrada”, o manual de vida hippie mais sagrado. Na realidade, um diário de campo. Quanta poesia num estilo de vida fadado ao fracasso, mas triunfante. Eis o paradoxo. Acabou mal. Fez bem. Terminou bem. Fez mal. Sacudiu o marasmo, derrubou o autoritarismo, revolucionou.

      Eu fui pós-hippie, quase hippie, meio hippie tardio: cabelo comprido, flor no cabelo, grampo para segurar os cachos, discursos contra o sistema, veia anarquista, defesa de uma sociedade alternativa, sexo e pouco rock, pois era muito MPB, Chico, Gil, Caetano, Belchior e outros que se foram, etc. Por isso me faltam alguns anos para a aposentadoria. Eu só queria dar o fora. Achava que do Bom Fim partiria a revolução que mudaria o capitalismo. Não queria o comunismo. Sonhava com uma comunidade libertária. Lia Kerouac no ônibus, na chácara e enquanto ouvia Tim Maia. A cabeça era um ninho de abelhas. Tudo zumbia. Efervescência pura.

      Melhor do que ser Jack Kerouac seria ter conhecido Carlos Castañeda, ou ter sido ele. Os leitores mais jovens, que também os tenho, poderão se perguntar: quem foi esse cara? O google resolve. Ou o pai. Havia poesia demais em Kerouac e seu bando. Uma poesia quase rude, nua, erotizada, desencantada, reencantada, furiosa, contra o sistema. Andei pelos Estados Unidos em busca de alguns rastros da geração beat. Não fui muito longe. Preferi ir a Dakota do Sul para ver a curva do rio onde era para enterrar o coração de Cavalo Louco. Os americanos pagaram minha viagem. Fui, vi, chorei, ao lado de um índio que esperava gorjeta, e voltei. Estive em São Francisco atrás dos remanescentes beatniks.

      Kerouac dominava ritmos linguísticos singulares. Tinha uma sintaxe muito própria. Nunca mais fomos tão loucos assim. Eu fui mais na imaginação. Por falta de coragem. Ricardo Carle, meu querido amigo precocemente falecido, era o mais Kerouac de todos nós. Dava até medo. Certas noites, leio Kerouac para dormir. Não sobra realidade. Tudo se desfaz. Já não porei o pé na estrada. Agora me basta por a imaginação. Era uma vez um tempo em que sonhar era um imperativo categórico. Acabou-se. Não há mais espaço para homens de pouco apego aos bens.


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