Lógica do perdão

Lógica do perdão

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No Natal, como muitas pessoas, como outros seres tão comuns quanto eu, tento parar para pensar. Não falo de tentativas de reflexões complicadas. Tento pensar é na vida de todos os dias mesmo: amor, amizade, problemas, puxadas de tapete, pequenas e grandes traições, inveja, cobiça, jogos de poder e viradas de mesa. É nessa época que me vem a grande recomendação: “Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. Pode haver determinação mais bela e difícil?

Como perdoar a quem nos ofendeu por perversidade, incompetência, negligência, inveja ou ignorância? Confesso que não sou bom de ódio. Tentei odiar algumas pessoas. Não consegui. Sei que não foi por virtude que não odiei, mas por incapacidade. Sei, então, perdoar? Não tenho certeza. Acho que não odeio nem perdoo. Como perdoar aqueles que nos ofenderam recentemente? Certamente há um tempo da tristeza, um tempo da mágoa, um tempo da reflexão e um tempo do perdão. Quero saber perdoar.

Creio, no entanto, que saber perdoar não pode significar baixar a cabeça e ficar calado para sempre.

Um grande presente de Natal é a sabedoria. A sabedoria para ser firme sem imprudência, duro sem violência, claro sem virulência, franco sem maldade e direto sem agressividade. Queremos que nossas ofensas sejam perdoadas. Desejamos que os ofendidos por nós entendam nossa dificuldade de perdoar. Remoemos na solidão da consciência a raiva contra os ofensores. Vivemos num mundo cada vez mais competitivo. O cidadão é cada vez mais o consumidor. O colega pode ser o concorrente.

O aluno é tratado por muitos como cliente.

Neste mundo de competição desenfreada, a ofensa é arma branca esgrimida como instrumento de trabalho. Dado que o Natal me torna piegas, desejo que por uma noite todos deixem de ser competidores. Não interessa o presente mais caro nem a festa mais luxuosa. Natal é esse momento de perdoar e ser perdoado ainda que só nas boas intenções. Imagino o sorriso dos céticos diante dessa minha súbita ingenuidade, essa irrupção no meio da tarde de uma vontade de entendimento, esse silêncio na brancura da tela, esse imenso desejo de perdoar e de ser perdoado.

Assim, enquanto escrevo, na placidez de um dia de folga, sinto-me, repentinamente, tomado por uma vertigem, essa inacreditável e ingênua vontade de ver um mundo melhor, essa incomensurável e persistente determinação para tentar ajudar a mudar o que parece imutável, essa franca e serena inclinação para o impossível, o improvável, o inalcançável, o absolutamente desejável.

Por essas veredas, algo acontece, um clarão, um fragmento, um estilhaço: a noite de Natal como a noite de perdoar e ser perdoado. Uma noite da grande utopia, essa mágica e impossível situação em que todas as mãos se unem, todos os braços se buscam, todos os espíritos se confundem, todos os ódios se apagam, todas as luzes da razão se acendem, todas as emoções brilham e o melhor dos homens sobe ao céu estrelado como balões soprados pelo vento leve dos bons sentimentos. Fecho os olhos e sonho.

 

 

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