Leituras e releituras no isolamento

Leituras e releituras no isolamento

Livros que abrem janelas para o mundo

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      Asilado em casa, leio e releio livros. Depois de devorar tudo o que tenho de Graham Greene, voltei a autores como Aldous Huxley. Tentei atravessar novamente o seu clássico “Admirável mundo novo”. Não me encantei. A ideia é ótima: descrever um mundo distópico, artificial, planejado, com indivíduos produzidos em laboratórios sob medida para as diferentes funções sociais. Quadro cruel do tipo varredores de rua não precisam de grande capacidade cerebral. A pegada é dura, chocante, direta. Diferentemente de outras vezes em que li esse livro, achei agora o texto seco demais, árido, como se não tivesse sido trabalhado. Talvez tenha sido justamente burilado para ser tão descarnado e duro.

      Vera, minha irmã que preside a Academia Santanense de Letras, pediu a minha opinião sobre “O amor nos tempos do cólera”, do gigante Gabriel García Márquez. Obviamente que reconheci a grandeza da obra, assim como a genialidade de “Cem anos de solidão”. Os livros do colombiano que mais me agradam, porém, são outros: “Ninguém escreve ao coronel”, “Crônica de uma morte anunciada” e uma coletânea de contos intitulada “Olhos de cão azul”. Gosto dessas narrativas curtas, extremamente focadas, tensas, com a corda esticada da primeira à última linha, como se o autor tivesse escrito sem respirar. “Ninguém escreve ao coronel” foi parido, em tempos difíceis financeiramente para o autor, num pequeno hotel de Paris, no Quartier Latin, ao lado do qual já muito me hospedei. Só que a minha escolha sempre foi um hotelzinho onde morou o mais genial e precoce dos poetas, Jean-Arthur Rimbaud.

      Se releio avidamente, também leio muito o que se vem publicando durante a pandemia. Devorei “Acta diurna” (Sulina), volume de crônicas de Gilberto Schwartsmann, escritor, agitador cultural, presidente da Fundação Bienal das Artes Visuais do Mercosul, oncologista de renome, professor aposentado da Faculdade de Medicina da UFRGS, humanista. São textos curtos, fluentes, críticos, cheios de humor, que tratam de temas diversos e relevantes, de “Tony Blair e os Tristes Trópicos”, passando por “Vargas Llosa e o protesto dos médicos” – Llosa que acha “A peste”, de Albert Camus um livrinho menor –, a “Olavo não é Sartre”, “Decameron e o coronavírus”, “Ratos da pandemia”, “O ministro que citava Platão” e “O ovo da serpente”. Quando levanto a cabeça, o dia já se esgotou.

      Os livros que leio ou releio falam das misérias humanas. Não me enganam nem me poupam da realidade. Quando, cansado de tantas delícias literárias, mudo de peça e me sento diante da televisão, descubro que a literatura perdeu terreno para a chamada “verdadeira vida”. Então, sem rebuscamento estético, humor ou alternância entre o belo e o feio, a tristeza e a felicidade, o mundo da pandemia desfila seu cortejo de horrores. A simples divulgação dos números de cada dia torna “Admirável mundo novo” um relato pálido da imaginação limitada de um escritor. Até o realismo fantástico de Gabo toma um tranco e fica meio rosa. A vida como ela se dá a ver prova que a imaginação literária falhou feio.


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