Lembranças de meu pai

Lembranças de meu pai

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Certos dias, quando o sol se põe, eu penso em meu pai e me comovo com a sua sábia simplicidade e me sinto tão cheio de saudade que sou capaz de ouvi-lo repontando o gado, assobiando o “boi barroso” ou ralhando com os cachorros. Eu penso em meu pai, o cabo Vito, e descubro nele sabedorias que a minha ignorância de guri me impediam de constatar. Eu penso em meu pai, quando o sol declina, e lembro que ele amava a natureza como se fosse um ecologista – termo que morreu sem verbalizar e certamente sem conhecer – cheio de tolerância e de carinho pela sua “terra-aldeia-pátria”. Homem do seu tempo e do seu pequeno lugar, amava a natureza sem deixar de usá-la em seu benefício.

– Não se judia de animal – dizia.

Era o seu termo, palavra do vocabulário da sua época, que usava, como todos nós, sem conhecer a sua raiz e a sua história. Lembro de um vizinho a quem disseram que judiar tinha relação com judeu. Ficou boquiaberto. Nunca tinha imaginado um vínculo tão evidente e forte. Certos dias, quando o sol se vai, eu penso em meu pai, gaúcho sem pilcha, homem amoroso sem grandes expansões sentimentais, camponês sem terra para chamar de sua, carreirista de poucos cavalos, domador cheio de indulgência com os animais, contador de causos de verve e mistério, jogador de truco de grandes blefes e risadas, madrugador sem preguiça para sentir a luz do amanhecer e o frescor dos campos, conhecedor de cada palmo de seu chão, de cada pio de pássaro, de cada sinal dos ventos, dos bichos, do tempo. Eu penso em meu pai, quando o sol se põe, e me pego inventariando lembranças, cavalgadas, abraços e gestos.

Certos dias, quando o sol se esconde, eu penso em meu pai, já velho e na cidade, pedindo para ser enterrado na campanha. Eu penso em meu pai me falando da importância de ser honesto, do certo e do errado, do bem e do mal, da chuva se preparando na Banda Oriental, dos seus anos de juventude num lugar chamado Madureira e das suas noites de espera sem medo em tarefas de militar. “Quase tivemos de invadir o Uruguai”, dizia repentinamente. “Quando passei três noites vigiando uma sepultura no cemitério de Palomas”, falava buscando sentir a reação do ouvinte. “De madrugada, na invernada da Brigada, um negro encilhava o cavalo. Eu me aproximava e ele sumia. Dizem que ali tinha existido no passado uma senzala”, contava quase sussurrando fantasmas.

Eu penso em meu pai, quando o sol se afunda no horizonte laranja, e me dou conta de que pouco lhe perguntei sobre sua infância, que me disseram, com poucos detalhes, ter sido muito difícil numa família de uma dúzia de irmãos e de poucos recursos junto à enormidade do latifúndio a caminho da sua decadência. Eu penso em meu pai, nas suas circunstâncias, nas contradições que elas lhe impuseram, e me deixo ficar contemplando as barras avermelhadas do poente. Sim, nesses dias, quando vendo o sol se por eu penso em meu pai, homem simples, rústico, franco, apreciador de um trago de cachaça, capaz de pedir fiado para nos dar pandorgas na Semana Santa, quando penso nele, assim, do nada, repentinamente, eu lamento nunca ter lhe dito isto:

– Pai, eu te amo.

Não se dizia isso para um homem. Muito menos para um pai.

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