Lembranças de um velho crime

Lembranças de um velho crime

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Dia de chuva, dia de remexer nas gavetas.

Virtuais.

       Era a vigésima vez que Leonardo assistia à Tristana, de Buñuel. Nem considerava o filme grande coisa. Quer dizer, era bom, muito bom, excelente, mas não era o melhor que já tinha visto. Ainda assim, sempre que uma sala especial, dessas de centros culturais, exibia o filme, lá estava Leonardo, o primeiro a entrar, temeroso de que faltasse ingresso.

 Por que não pegava a fita (uau!)  numa locadora?

     Pergunta idiota. Leonardo era um purista: não via filme em vídeo nem por decreto. O cinema era um lugar sagrado. Mais do que um templo, um útero. Não que Leonardo fosse cinéfilo. Não era. Mas tinha o aguçado senso das coisas. Cada lugar no seu lugar, dizia. Daí não recuava, não avançava, nunca mudava. Para Leonardo, a permanência era uma garantia de qualidade natural.

    Vídeo, jamais.

     Leonardo também não via jogo de futebol na televisão, a não ser que fosse a final da Copa do Mundo, disputada em país distante. A sua teoria era simples: o replay altera a substância do gol. Leitor de Walter Benjamin, sem ter a convicção de que o compreendera, Leonardo era a favor da aura e contra toda e qualquer reprodutibilidade técnica de um gesto único.

Gol, assegurava, só se vê uma vez.

     Filme, ao contrário, devia ser visto ao menos seis vezes. Não por gosto ou veneração. Por coerência. A arte exige sacrifício. A verdade é que as manias de Leonardo não incomodavam ninguém, pois era um cara solitário, pacífico e com muito tempo livre. Funcionário de uma seguradora, ganhava bem e gostava de aplicar o seu dinheiro em cultura.

Chegou a comprar as obras completas dos autores da Objetiva.

Só para destruí-las, visto que tinha horror ao marketing cultural.

     Foi aí que tudo aconteceu. Bom, não foi bem aí, mas, por assim dizer, num momento assim, qualquer, um instante, digamos, cinematográfico. Leonardo amava Truffaut, que amava as mulheres, que amavam os poderosos, os famosos, os ricos, os com prestígio. E isso Leonardo não podia aceitar. Uma mulher não tinha direito de trair Truffaut.

Mesmo que nada lhe tivesse prometido.

     Por amar Truffaut, Leonardo insistia em rever filmes de outros mestres. Queria comparar, medir, escrutar, perceber as diferenças, mapear cada personagem, localizar os mistérios previstos pelos cineastas em seus momentos de suprema loucura. Para Leonardo, o cinema era o único meio técnico apto a traduzir o mundo real, dado que funcionava por imagens em movimento e podia, se quisesse, prescindir da palavra.

     Nada enfurecia mais Leonardo do que as idéias da Escola de Frankfurt a respeito do cinema, em especial as de Theodor Adorno. Esse, Leonardo odiava. Colecionava bonecos de vodu cravejados de agulhas mortais com a figura do pensador alemão. A principal qualidade de Leonardo era a fidelidade aos mestres. Quando lhe disseram que talvez a aura não fosse eliminada mas criada pela reprodutibilidade técnica, Leonardo surtou.

Incomodava-lhe pensar que teria de rever posturas tão arrumadas, estruturadas, pertinentes.

     Depois da noite, num bar, em que tomou conhecimento dessa hipótese, nunca mais foi o mesmo. Olhava uma reprodução da Gioconda e ficava constrangido. Então o original teria sido beneficiado por aquela cópia horrorosa? Não podia ser. A situação agravou-se quando lhe disseram que a repetição faz o mito. A alma simples do sujeito perdeu o brilho, empanou-se, ficou sombria. Só lhe restou esconder-se nas salas escuras à procura de alento, de inspiração e até mesmo de surrealismo. Sim, até mesmo de surrealismo. Especialmente isso.

     O bom do cinema é que a leitura de um filme pode ser feita no escuro, longe dos olhares indiscretos, na calma da penumbra que mata a aura dos falsos iluminados. Leonardo bebia no negrume da sala os únicos momentos de paz numa vida perturbada por questões teóricas “irreprodutíveis”. Em Tristana, encontrava uma estranha brecha para o infinito. O conteúdo do filme não o interessava, ou cada vez menos. Apegava-se à figura dos atores (cujos nomes nunca citava por superstição) e deixava-se arrastar numa corrente de fagulhas, de pontos ora escuros, ora brancos, ora luz, ora sombra, ora paixão.

     O filme era mórbido, como a sua vida. E isso lhe bastava. Como teria feito Truffaut com o mesmo tema, os mesmos atores, o mesmo pathos? As questões transpiravam absurdo. Por isso mesmo, pareciam-lhe ainda mais adequadas. Leonardo, sem o saber, fazia metafísica por incapacidade intelectual congênita. As melhores idéias, às vezes, saem da piores cabeças. Em realidade, Leonardo nada sabia de cinema e pouco se importava com a hierarquia das obras. Só não podia suportar a quebra da aura e as traições a Truffaut.

     Leonardo era o típico sujeito para quem o efeito era mais importante do que a substância, embora jurasse o contrário. Por isso, detestava o Dogma 95. Ou o cinema inventa a ilusão que revela os mistério da vida, ou é pura mistificação. Num momento de arroubo, Leonardo confeccionou a frase da sua existência: a arte é puro efeito. O resto não passa de defeito. Bom, não chegava a ser uma obra-prima, mas melhor não conseguiria. O pensamento, de qualquer maneira, limitava-se a uma tempestade provisória de idéias precárias.

Ao levantar da poltrona, depois de mais uma sessão de Buñuel, ouviu uma mulher comentar: “Só Buñuel seria capaz de fazer algo assim”. Exasperou-se. Apesar de não conhecer a moça, interpelou-a: “E Truffaut?” A resposta foi uma risada sarcástica: “Truffaut não tinha aura para tanto surrealismo”. Leonardo respirou fundo, sentiu o gelado suor empapar-lhe a testa, a mão deslizar pelo casaco. Disparou três vezes, sem refletir. A mulher caiu aos seus pés. O crime é sempre perfeito, pensou Leonardo. Impossível de ser reproduzido.

Mais ainda de ser praticado por um teórico.

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