Lições de Edgar Morin

Lições de Edgar Morin

publicidade

Aos 97 anos, Edgar Morin é um farol solitário.

Deixo o leitor com um fragmento do seu “Método 6”. Para refletir em tempos de incerteza e medo.

“Enquanto existirem os Estados-nação soberanos absolutos, estaremos condenados às concessões. Mas até onde ir? Pode-se esperar uma justa sociedade das nações capazes de impor a aplicação universal dos direitos do homem? O problema não é somente que o realismo, adaptando-se às situações de fato, torna-se imoral, e que o ideal, não considerando as condições reais, torna-se utópico, mas que cada um desses termos contém a própria incerteza. A política que crê privilegiar o realismo rejeita como angelical, absurdo, nefasto, o imperativo ético da resistência.

A reivindicação da verdade, da liberdade, da justiça, foi considerada uma loucura não apenas pelo poder que aprisionava os dissidentes em asilos psiquiátricos, mas também por muitos observadores ‘realista’ externos. Foi certamente uma loucura de Siniavski escrever ao Komsomolskaïa uma denúncia do stalinismo pela qual foi imediatamente encarcerado. Foi uma loucura dos jovens Scholl pela qual foram mortos a machado. Contudo essa loucura absurda e irrealista teve um caráter lúcido e necessário. Foi testemunho do imperativo ético irredutível ao realismo. Encorajou a resistência e fecundou o futuro. Numerosos resistentes, irrealistas no começo, tornaram-se, graças ao desenvolvimento de circunstâncias favoráveis para as quais contribuíram, mais realistas do que todos os realismos.

Já indicamos que o ‘não’ ao ocupante de Joana d’Arc e o de Charles de Gaulle devem ter parecido no começo irrealistas, pois eles ignoravam as condições objetivas do momento, mas, ao longo do tempo, essa ética contribuiu para transformar as condições objetivas e revelou-se realista para a soberania nacional. A recusa da derrota por De Gaulle era extremamente irrealista depois do desastre militar de maio-junho de 1940, quando muitos se resignavam pelo realismo à colaboração, que lhes parecia um compromisso vital para preservar um mínimo de soberania. Mas os desenvolvimentos então improváveis da guerra em favor dos aliados tornaram realista a recusa de Charles de Gaulle e irrealista a aceitação de Pétain.

Contudo, em condições diferentes, quando a ocupação foi exercida por nações democráticas, a colaboração alemã à ocupação aliada foi um compromisso vital que preparou o retorno à soberania. Existem casos também em que a resistência busca o compromisso vital; assim, o Dalai-Lama, para salvaguardar a existência cultural do Tibet, busca um arranjo com as autoridades chinesas. A política passa incessantemente pelo conflito entre realismo e utopia; ora, esse conflito encobre um duplo problema fundamental: o da incerteza do realismo e o da incerteza da utopia.

A utopia é, em política realista, sinônimo de impossibilidade. Mas é preciso distinguir duas utopias: uma, de harmonia e de perfeição, efetivamente irrealizável. A outra comporta possibilidades ainda impossíveis, por exemplo, a eliminação da fome e da miséria do planeta, a supressão da guerra entre nações, o estabelecimento de uma sociedade-mundo.

O utopismo banal ignora as impossibilidades. O realismo banal ignora as possibilidades. Como vimos, o realismo banal ignora que o real é trabalhado por forças subterrâneas, invisíveis, no começo, que tendem a transformá-lo. Ignora a incerteza do real. O utopismo banal ignora as impossibilidades, mas a noção de impossibilidade é problemática.

A relação entre o possível e o impossível é variável conforme as condições históricas. Também a dificuldade de reconhecer o possível e o impossível varia em cada situação concreta. O impossível pode tornar-se possível: tornar-se bípede deve ter parecido impossível ao quadrúpede, mas uma parte da sua prole o conseguiu. A asa deve ter parecido impossível para o réptil, mas uma parte da sua descendência se tornou pássaro. Toda metamorfose parece impossível antes de acontecer.

O verdadeiro realismo baseia-se na incerteza do real. O problema está em não ser realista no sentido trivial (adaptar-se ao imediato) nem irrealista no sentido trivial (escapar aos limites da realidade), mas ser realista/utópico no sentido complexo: compreender a incerteza do real, saber que existe um possível ainda invisível no real.

Diante das contradições ético-políticas, a perspectiva ética é de condenar a política ou de aceitar um compromisso, ou seja, tentar uma navegação difícil e aleatória na dialógica dos imperativos antagônicos. Há casos em que a navegação dialógica é possível como no antagonismo entre ética da responsabilidade e ética da convicção, a partir do momento em que há convicção para assumir a responsabilidade e responsabilidade para salvaguardar a sua convicção. Ainda aqui reaparecem de maneira inseparável aposta, estratégia e conhecimento complexo, sem eliminar a incerteza, mas levando-a em consideração”. Todo imaginário é real. Todo real é imaginário.

 

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895