Longe de casa e do sentido

Longe de casa e do sentido

Filme "A febre" toca na perda da identidade

publicidade

      No filme “A febre”, de Maya Da-Rin, disponível na Netflix, um indígena saudoso da vida na sua aldeia, trabalha como vigia no porto de Manaus. Em determinado momento, ele diz para a filha, que obteve vaga para estudar medicina em Brasília: “Eu passo o dia na tocaia, caçador sem presa”. É realmente de partir o coração. O filme é lento, muito lento, como se convencionou que uma obra de arte deve ser em certa concepção artística. Vencida a lentidão inicial – melhor não ver muito tarde –, conquista a atenção e emociona. Quem já não se sentiu vazio, saudoso do seu mundo originário, com vontade de largar tudo?

      O irmão mais velho do protagonista faz-lhe uma visita e estimula-o a passar uns tempos na aldeia, mas, ao mesmo tempo, conta que as coisas já não são como antes por lá. Basta, de acordo com o clichê impositivo, de spoiler. Atualmente é preciso falar de filmes sem contar muito do que tratam. Fico com esses dois eixos para a consideração: o caçador sem presa e a saudade de uma aldeia que não existe mais como antes. A partir de certa idade somos todos índios nostálgicos de uma infância perdida para sempre. No caso do filme, porém, não se trata de metáfora. É uma questão de imaginário. Como fazer durante vinte anos um serviço que não parece ter qualquer sentido? Como comprar comida no supermercado quando se vem de uma cultura na qual se deve plantar, caçar e fazer a própria comida a cada dia? Vigiar, vigiar, sem poder se distrair, uma engrenagem sem alma.

      A vida na floresta tinha aura. É isso que todos procuramos. Quando se perde a aura, por distanciamento da origem ou por se levar uma vida mecânica, há forte possibilidade de triunfar a depressão. A janela para o mundo, ainda mais em tempos de pandemia, é a tela. São muitas as telas em nossas vidas. Grades e telas. Olha-se a tela grande enquanto se mexer na tela pequena. Vez ou outra, espia-se a rua. Dá vontade de gritar para o vigia infeliz de “A febre”: “Vai, não olha para trás”. Não se trata de um filme fechado para a relação intercultural: a filha ama o pai. Já não compartilha o seu mundo. Ele não a tolhe. Embora sofra com a separação, diz: “Se é importante, vá”.

      O caçador vira caça, preso numa jaula cultural. Tudo funciona e nada o motiva. Ele encontrou um lugar, que não é o seu lugar. Empregado, sente-se desterrado. O neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl destacava essa vontade, ou desejo, de sentido do ser humano. Quando o sentido desaparece, o caçador vigia uma presa que se perdeu. Espiritualidade é um nome que se dá a essa relação com o sentido. Como encontrar sentido quando se está fora do lugar? Como se sentir parte de algo quando tudo se resume a olhar e comprar (quase) pronto? O humano se fazia fazendo o que precisava em relação permanente com a natureza. Quando esta se torna pano de fundo ou cenário, algo se quebra. Há quem fale em mundos “desmagificados”. Pode-se usar também a expressão “sem sentido”. Na tocaia, caçador sem presa nem horizonte. Se o filme a lento, o despertar é rápido. Há algo para ser visto.

 


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895