Louca, cercada, intensa e bela Havana

Louca, cercada, intensa e bela Havana

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A viagem do governador Tarso Genro foi um sucesso comercial.

Muitos acordos foram assinados.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

Foi recebido no Comitê Central do Partido Comunista Cubano.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cuba é um país muito particular. Parece redundância que a utopia, fracassada ou não, tenha lugar numa ilha. Havana é uma cidade estranha: louca, intensa, contraditória, com atmosfera, cheia de jeitinhos capazes de melhorar a sobrevivência. Os visitantes ficam perplexos com a beleza e a degradação do centro histórico. Habana Vieja é patrimônio da humanidade, mas não pode receber dinheiro da UNESCO para sua restauração. Outros visitantes ficam perplexos com a prostituição em torno dos grandes hotéis. Outros ainda se impressionam com a defesa que fazem do regime alguns velhos cubanos: ninguém passa fome, argumentam, não há crianças nas ruas e, apesar do terrível embargo americano, a saúde continua de boa qualidade. Outros estrangeiros espantam-se com a “passividade” dos cubanos. Por que não se rebelam? Por que suportam um único e esclerosado partido? Até muitos dos precários e exóticos “cocotáxis” pertencem ao Estado.

A frota de carros melhorou, mas ainda chama a atenção.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

Há ônibus realmente populares.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

Perguntas não faltam.

Os estrangeiros perguntam aquilo que não lhes vem à cabeça sobre seus países.

Por que os cubanos aceitam?

Por que convivem com o mau gosto da imensa estátua do Memorial José Martí, homenagem ao lendário herói da pátria para quem “grandes valores não se conquistam com lágrimas, mas com sangue”? Por que não exigem democracia? Nas ruas, cubanos dividem-se. Nada mais fácil do que encontrar alguém para criticar o socialismo castrista. Nada mais difícil do que encontrar alguém disposto a comprar uma briga com o poder estabelecido? Havana vibra nas noites “calientes” ao som trepidante dos ritmos caribenhos, sob a fumaça dos charutos e no embalo do rum. Há quem admire o “Malecón”, imensa avenida beira-mar que, para os locais, é o maior bar do mundo, com quase oito quilômetros de beberagens, amassos noturnos otras cositas más por supuesto. Chama a atenção de outros o fato de que os cubanos adoram oferecer seus e-mails, que raramente consultam por falta de internet e de computadores, recorrendo a amigos dentro de hotéis ou de embaixadas.

Bobos, porém, os cubanos não são. Quando sentem alguma condescendência nas perguntas, reagem orgulhosamente. Disparam: “Por que os brasileiros nunca se rebelaram contra a miséria? Por que tanta passividade? Um minuto depois, falam mesmo é das nossas novelas. Querem fugir da realidade, sair da rotina, sonhar. Se tivessem 20 times de futebol e gostassem desse esporte, assegurariam mais 50 anos de revolução. Havana é sedutora, envolvente, vadia, cheia de curvas, uma cidade de atalhos e dribles. Nos últimos dez anos, recuperou-se um pouco. Decadência e dignidade convivem. Conceitos opostos – tirania e pátria da liberdade – saltam das bocas como perdigotos. Não raro se percebe uma ponta ironia no meio de alguma sílaba. Mesmo os lugares turísticos, como os míticos Floridita e Bodeguita del Medio, exibem  poderosamente os contrastes dessa louca Havana, dessa Cuba teimosa, comprometida e inquietante.

Há quem se espante até com festerê gay ao ar livre. Parece, de certa maneira, que, cansada de falar em futuro, rompida para sempre com o passado e descrente do presente, Havana se entregue a um aqui e agora do jeito que dá. Se não para consumir desbragadamente, fetiche da mercadoria cada vez mais universalizado, dá para se consumir até a última gota, até se gastar.

Por que não?

Aprendemos logo a degustar as boas coisas.

Um daiquiri e um Monte Cristo no Floridita.

Bons peixes nos Paladares.

 

 

 

 

 

 

 

 

E a usar os transportes locais (eu e a colega Rosane Oliveira).



 

 

 

 

 

 

 

 

 

Saio às ruas. Converso com uns e outros. Ariel, mecânico, 34 anos, pesa a mão: “O que nos falta é vontade de trabalhar. Estamos acostumados a receber o pouco que temos do Estado, tudo de mão beijada. Necessitamos de um tranco para avançar”. Virgílio, motorista de táxi, 32 anos, concorda: “Temos um ditado que diz: quem quer apanhar peixe, precisa molhar as nádegas. Acontece que não aceitamos mais molhar nem os pés”. Camilo, 53 anos, padeiro, discorda: “Somos um pequeno país, uma ilha, estamos praticamente sozinhos contra todos, temos um gigante, os Estados Unidos, em nossas costas, não há, desse jeito, como fazer tudo certo. Resolvemos problemas importantes. Temos muito mais igualdade que outros”. E a liberdade? Marcela, professora de História, garante que a liberdade das democracias formais é uma ilusão. À noite, porém, ela faz programas para arredondar os fins de mês da família. Ganha US$ dólares por programa. Basta sentar-se com suas saias muito curtas, pretas ou verdes, nos saguões dos grandes hotéis”. A vida é dura. Que fazer?

Caminho pelo Malecón de manhã (à noite, dizem-me, é perigoso). A grande avenida beira-mar atrai jovens para conversar, beber e amar. Linda, 23 anos, está caminhando para “arejar as ideias”. Depois de alguns segundos de desconfiança, abre a guarda: “Eu queria ir embora. E voltar. Amo Havana. A merda é que está tudo muito difícil aqui. Não temos perspectivas”. Juan Pedro, 56 anos, motorista de ônibus, está andado por orientação médica. De repente, sopra no meu ouvido: “Tudo aqui é ilusão”. Vai embora apressado. Ninguém quer ser fotografado. Entendo. Aceito. Encontro José, 46 anos, professor de filosofia, especialista em Hegel e Marx. Ele garante não ser um marxista ortodoxo e defende abertura democrática para Cuba, mas não aceita um retorno ao capitalismo que rotula de “selvagem”. Defende uma nova social-democracia.

– Precisamos conciliar liberdade com igualdade. Chegamos a um grau de igualdade extraordinário. Não é só a igualdade do nivelamento por baixo. Demos às pessoas os que certamente a maioria não tem no Brasil: escola, comida, segurança, médico, remédios, casa para morar, o básico, o indispensável, aquilo que o capitalismo deixa para depois e nós sabemos que precisa ser imediato.

Muitos querem falar. A condição é uma só: que eu não me comporte como turista nem como jornalista impiedoso. A condição é não dar sobrenomes e não tirar o celular do bolso. Depois de conversar com mais de 20 pessoas, tenho uma ideia, um resumo da situação: a maioria quer mais liberdade, menos censura, mais abertura, mas poucos são os que aceitariam abrir mão dos benefícios garantidos pelo Estado. Eva, cabelos muito brancos, 68 anos, que encontro numa praça em Miramar, parte elegante de Havana, tenta me explicar calmamente a sua filosofia de vida:

– Há os que fazem pouco e reclamam muito. Tem os que fazem muito e reclamam pouco. Precisam de gente que faça muito e reclame muito. O regime dos Castro já se esgotou. Mas não queremos voltar aos tempos de Batista. Andamos e sofremos muito para morrer na praia. A luta continua. Queria o quê? Que tudo estivesse bem? Que tivéssemos a melhor tecnologia do mundo? Cuba é maltratada pela sua ousadia, pelo que fez, pelo que é, por ter se atrevido a ser o que não podia e não devia.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Volto para o hotel.

Tomei uma lição de dignidade.

Fecho com uma foto que, ao pedir para que fosse tirada, avisei, sem que me perguntassem, que era para meu arquivo pessoal.

Era um momento de descontração.

No Floridita, onde conversei com o governador Tarso Genro sobre literatura cubana e universal.

Tarso é um verdadeiro intelectual.

Leu muito.

Conhece os grandes autores.

Publico a foto como uma homenagem a um político que ama a arte.

Somos nós tietando o grande Ernest Hemingway.


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