Lugar de fala e falas fora do lugar

Lugar de fala e falas fora do lugar

A hora e a vez dos asfixiados

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      O lugar de fala não silencia: cala.

Aquilo que cala penetra na alma e revela as expressões mais profundas do eu asfixiado. Não importa o que se tenha feito, não há relativização para o atroz. Nos estupros, a defesa do macho costuma recorrer ao abjeto “ela provocou”. Com o quê? Com sua saia curta, com seus gestos, com seu corpo. Tudo retórica do indefensável. Lugar de fala, no contexto do silêncio histórico, não é discurso de autoridade, mas autoridade do sofrimento. Existem experiências singulares das quais é possível aproximar por empatia. Vivê-las totalmente, não. Quem pode realmente sentir as dores e delícias da gravidez e do parto? Há lugar de fala em todas as falas.

      Falas do bem e do mal, falas da emancipação e da perpetuação da infâmia. Dizer que não há racismo no Brasil exprime o lugar de fala de quem? Em 1850, um certo Antônio Pedro de Carvalho propôs, dada a impossibilidade de manter o tráfico de escravos, a importação de “colonos africanos”. Lacerda Werneck opôs-se à importação de chineses com um argumento impensável: “Nem mesmo são humanos [...] uma espécie de monstros, quer no corpo, quer no espírito... são lama... pó... nada”. O racismo bloqueou a “solução chinesa”. Do seu lugar, Werneck falava: “O escravo é um objeto de luxo”. A aristocracia escravocrata nada tinha contra o luxo e queria ser servida na cama e na mesa pelo resto dos tempos e dos recursos.

Paul de Kock, pseudônimo de um articulista do jornal maranhense Pacotilha, em 18 de novembro de 1884, desmascarou o lugar de fala dos que podiam exprimir-se no Brasil: “Uma terra onde reinava a maior indolência, uma preguiça de Lazzaroni, onde todos queriam ser bacharéis e oficiais da Guarda Nacional, onde não havia artes, indústrias, enfim – uma terra onde ninguém trabalhava. Desse modo, era justo que os opositores da abolição imediata da escravatura procurassem, por todos os meios, conservar aqueles que eram forçados a trabalhar dia e noite, não como homens, e sim como máquinas”.

Do seu lugar, o perigoso articulista atacava a elite que “vive em pândegas, em regabofes, em festanças, rindo e folgando, alegre, satisfeita sem se importar com o dia de amanhã, sem cuidar do futuro, pois tem certeza que lá embaixo, nas senzalas, bestas humanas se aniquilam trabalhando para o engrandecimento dela”. O que esse comportamento dizia? Simplesmente que os brancos encaravam a escravidão “como a ordem natural das coisas, não vendo no negro senão um ente que por Deus foi destinado a ser sempre escravo, não admitindo ideia de que um dia tenham de entrar diretamente na luta pela existência”. O lugar de fala transforma-se em imaginário, uma ficção sobre a realidade que se torna mais real do que a própria realidade.

Chegou a hora de ter lugar a fala daqueles que durante séculos foram asfixiados. Ou como dizia certo personagem: “O silêncio fala e fala mais quando se torna política de Estado, o estado das coisas que devem permanecer para satisfação de poucos e tristeza de muitos”. Lugar de fala é discurso de quem tem, enfim, direito de falar por si. O que não falta é porta-voz das falas fora de lugar.

 

 

 


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