Mário de Andrade, moderno, boêmio e bissexual

Mário de Andrade, moderno, boêmio e bissexual

Biografia mostra o autor de Macunaíma por inteiro

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Entrevista para o Caderno de Sábado/Jason Tércio

A modernidade de Mário de Andrade

Figura maior do modernismo brasileiro, ícone da Semana da Arte Moderna de 1922, criador de um personagem que parecer andar por aí, o impagável Macunaíma, Mário de Andrade virou instituição nacional. Faltava-lhe, porém, uma biografia. Está feito. O título é vasto como o seu objeto: “Em busca da alma brasileira – biografia de Mário de Andrade” (Estação Brasil). Leva a assinatura do jornalista e romancista Jason Tércio, que já se destacou com “Órfão da tempestade, a vida de Carlinhos de Oliveira”. Nesta entrevista, o biógrafo põe o biografado em cena como um personagem complexo, completo e boêmio.

 

Caderno de Sábado – Por que uma biografia de Mario de Andrade?

Jasom Tércio – Ele sempre foi o principal líder do modernismo. Teve uma grandeza não só como escritor, mas também como agitador cultural. A primeira vez que falaram na necessidade de uma biografia de Mário de Andrade foi em 1970, 25 anos depois da morte dele. Estou preenchendo uma lacuna, cumprindo uma missão. O grande problema para contar a vida dele foi que 99% das pessoas que conviveram com ele já morreram. Eu tive, então, de recorrer basicamente a documentos e arquivos. Essa falta de testemunhas não chegou a afetar o meu trabalho. Se encontrasse pessoas vivas, elas estariam muito idosas e certamente com a memória não muito boa. É mais um livro de história que jornalístico. O interesse dos acadêmicos, quando se trata de figuras como Mário de Andrade, é por aspectos específicos da obra. Havia uma imagem do Mário, como intelectual e ser humana, que não corresponde ao que ele foi realmente. Ele não era uma figura austera, intelectual de gabinete, como se pensa, um católico fervoroso só preocupado com igreja, mas um personagem solar, um cara festeiro, boêmio, que gostava de viver a vida, embora muito dedicado ao seu trabalho, metódico, disciplinado, muito organizado, focado. Só que ele sabia separar muito bem as coisas, momento de trabalhar, momento de curtir a vida.

CS – Equilíbrio entre festa e trabalho.

Tércio –  Ele precisava equilibrar o próprio pensamento. Era uma época de muita polarização. Havia quem criticasse artistas pela adesão a vanguardas internacionais. Mário sempre mostrou grande amor pelo Brasil, sem deixar de acompanhar o que acontecia no exterior. Nesse sentido, ele foi uma figura singular, realmente única e envolvente.

CS – Algumas informações do seu livro mostram, de fato, um Mário de Andrade diferente. Na sua peregrinação pelo Nordeste, ele fez festa com coco, “frevo, cocaína e éter”. Foi uma surpresa para o biógrafo?

Tércio – É. Chama a atenção que naquela época já havia o consumo de drogas. Ele tinha também esse lado mais livre. Nessa fase, ele já não era aquele católico praticante, característica da juventude, até a Semana de 1922, quando era capaz de ir à missa mais de uma vez por dia. Depois, tornou-se um homem de espírito aberto, boêmio, sem incompatibilidade entre o seu lado sério e o seu gosto por festa, carnaval, de todo tipo de música. Enfim, aparece um Mário de Andrade diferenciado. Normalmente se pensa que o Oswald era o mais extrovertido. Na verdade, o Oswald de Andrade era até mais comportado. Ele sempre foi casado. Mas o Oswald, por outro lado, era mais agitador, provocava mais, um agitador cultural. Mário era o pensador.

CS – O seu livro revela um grupo de pessoas vaidosas, impiedosas umas com as outras nas críticas e, alguns momentos, maldosas e fofoqueiras.

Tércio – Havia um lado muito interessante que hoje não existe mais. Não se faz mais críticas. É muito tapinha nas costas. As pessoas diziam o que pensavam. Houve muita polêmica. O modernismo nunca foi um movimento homogêneo. Desde o início havia divergências. Nem todos eram, de fato, modernistas de corpo e alma. Teve desacordo entre Mário e Oswald de Andrade, entre Sérgio Buarque e Guilherme de Almeida, também entre Oswald e Graça Aranha. Eles se agrediam muito, de certa forma, mas, ao mesmo tempo, conseguiam conviver e colaborar.

CS – Oswald de Andrade esculhambava a mania de Mário de Andrade de abrasileirar a língua portuguesa. Era um deboche permanente e duro.

Tércio – O Oswald tinha um incontrolável pendor para a gozação. Esculhambava os outros facilmente. Ele era do tipo que perdia o amigo, mas não perdia a piada. Fala-se muito da briga dele com o Mário. A verdade é que quase todos os modernistas brigaram com o Oswald. Romperam a amizade mesmo. Paulo Prado, Carlos Drummond, o poeta francês Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira, Dona Olívia Penteado. Na década de 1930, como o movimento mais consolidado, Oswald de Andrade, mais à esquerda, ficou praticamente sem amigos, bastante isolado. Ele era muito impiedoso. Apelidou Tristão de Athayde de Tristinho do Ataúde. Passou a chamar dona Olívia, que recebia os modernistas em seu palacete para saraus, de dona Azeitona. Graça Aranha era Aranha sem graça. O pior era o do Cassiano Ricardo: ratazana ao molho pardo. E tinha calúnia também. Durante o movimento da antropofagia, na chamada “segunda dentição”, havia muitos ataques pessoais. O Mário de Andrade, porém, era mais cavalheiresco. Não costumava atacar os outros. O Manuel Bandeira também procurava se manter acima dessas querelas.

CS – Sempre se diz, em tom de zombaria, que o Brasil é peculiar na sua história: a independência foi feita em família, a República teria sido uma quartelada sem sangue, e a Semana da Arte moderna, a nossa mais revolucionária ação estética, um grande sarau de burgueses patrocinado por um exportador de café. É um pouco o que o seu livro mostra também.

Tércio – É a narrativa que permanece. Na verdade, a Semana da Arte Moderna foi um movimento mais de classe média. O Paulo Prado reuniu um grupo de amigos e deu uma contribuição para a Semana de um conto de réis. Não era nada para ele. Mas se resumiu a isso. Depois, quando fizeram revistas, como Klaxon, ele era sócio igualitário para não ter ascendência sobre a publicação. Além do Paulo Prado, nesse sentido, havia dona Olívia, muito rica, que acabou se convertendo ao modernismo. Os modernistas é que converteram membros da aristocracia. Paulo Prado gostava de arte, mas era de uma arte mais clássica.

CS – Não deixa de ser paradoxal ou até engraçado que alguém, no caso Paulo Prado, escreva uma obra chamada “Retratos do Brasil”, que ganharia valor histórico, hospedado no Copacabana Palace.

Tércio – Ele era o burguês intelectual. Mas, naquela época, outros movimentos de classe média tiveram importância, como o tenentismo. O modernismo e o tenentismo são duas faces de uma mesma moeda, a ascensão da classe média no cenário político e cultural brasileiro. Só que o tenentismo se tornou de direita, participando do Estado Novo e do golpe de 1964. O modernismo também se dividiu ideologicamente. Tivemos Antropofagia e Verde-Amarelo, que era mais à direita.

CS – O que sobra em termos estética do modernismo de 1922, a poesia? A prosa, incluindo “Macunaíma”, tem mais valor documental e histórico?

Tércio – “Macunaíma” é um livro único. Foi adaptado para teatro. Virou filme, samba-enredo. Todo mundo, mesmo quem não leu o livro, conhece o personagem. E tem “Memórias sentimentais de João Miramar”, do Oswald Andrade, que, embora pouco lido atualmente, pelo radicalismo da proposta formal, merece um lugar de destaque na literatura brasileira. Foi um movimento mais de agitação que de obra. Mário de Andrade tem uma obra relativamente pequena, talvez pelo envolvimento com muitas atividades. São basicamente dois romances, “Macunaíma” e “Amar, verbo intransitivo”. A obra poética é grande, mas também não muito. Contos são outros dois livros. É uma obra variada, um extenso painel da vida cultural brasileira. Agora, o modernismo de 1992 abriu caminho para o romance de 30. Os romancistas nordestinos de 30 nem sempre reconheciam essa filiação, mas críticos como Wilson Martins consideram os anos 1930 como continuação estética e literária dos anos 1920. Foi o momento, embora houvesse poetas como Drummond e bandeira, do romance. A primeira etapa foi de combate. A segunda, mais de criação.

CS – Manuel Bandeira aparece no seu livro como uma figura equidistante, etérea, não fala mal de ninguém. Os outros são cobras.

Tércio – Era o espírito do tempo. Foi uma época de conflitos políticos e bélicos: 1922, 1924, 1930, a guerra civil de 1932, a intentona de 1935, o Estado Novo. Enfim, o pessoal gostava de brigar. Tinha isso.

CS – Graça Aranha, que figura como elemento fundamental na semana de 1922, aparece como um diplomata aposentado, cinquentão oportunista e disposto a quase tudo para encontrar espaço e brilhar um pouco.

Tércio – Ele não de fato um modernista. Queria se promover. Poderia, depois da Semana, ter tentado produzir algo dentro da concepção do modernismo. Nem isso. Ficou nos seus ensaios sem muita novidade.

CS – O que ele fez de mais interessante foi uma provocação na Academia de Letras, declarando a inutilidade da instituição.

Tércio – Deve ter sido o único acadêmico a fazer isso. Comprou uma briga enorme dentro da Academia. Acabou tendo de renunciar. Foi um gesto estapafúrdio. Ele poderia ter continuado acadêmico e modernista. Guilherme de Almeida, por exemplo, acabou entrando para a ABL. A Academia, na época, tinha toda uma simbologia, era importante.

CS – Basta ver que teve engarrafamento quando Graça Aranha anunciou que faria uma intervenção imperdível na ABL.

Tércio – Foi uma performance.

CS – Mário de Andrade disse, entre tantas frases antológicas, que “o Brasil é feio, mas é gostoso”. Ainda vale essa provocação?

Tércio – Sem dúvida. O Brasil modernizou-se a partir de 1922, com a cultura na frente da política e da economia, avançou e teve alguns retrocessos, mas hoje temos uma cultura moderna, antenada com tudo que acontece no mundo e, ao mesmo tempo, profundamente brasileira. O maior legado do modernismo é o espírito rebelde, inconformista e otimista.

CS – Mário de Andrade era bissexual?

Tércio – Há evidências nesse sentido. É certamente a categoria mais precisa para descrevê-lo. Havia mais dúvidas sobre o seu interesse por mulheres. Mas mostro que, na sua viagem à Amazônia, ele se sentiu atraído inclusive por uma índia. Na documentação, aparecem várias indicações de interesses heterossexuais. Apresento também uma carta de um homem, cujo nome preferi preservar, que se posiciona como tendo um caso com Mário. Pode ter sido algo passageiro. Mário disse ao amigo Rosário Fusco que seria capaz de ter relações até com uma árvore.

 

 


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