Maffesoli e a sensibilidade ecosófica

Maffesoli e a sensibilidade ecosófica

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Em defesa dos mistérios da vida

 

Aos 72 anos de idade, o sociólogo francês Michel Maffesoli nada mais precisa provar em termos intelectuais. Professor aposentado da Sorbonne, com uma vasta obra publicada, ele saboreia a vida entre um belo apartamento no boulevard Saint-Germain, no coração do Quartier Latin, em Paris, uma casa na montanha, onde aproveita para escrever, e outra, recém-adquirida, um pequeno castelo, no sua cidade natal, no sul do país. Franceses cultos adoram um pouco de vida no campo. Estão certos. Durante o ano, Maffesoli viaja pelo mundo fazendo palestras. Entre os seus destinos, Brasil, Coreia do Sul, Japão, Itália, Espanha... Teórico da pós-modernidade, com uma leitura bastante singular e pertinente do fenômeno, ele publicou livros incontornáveis sobre o assunto como A conquista do presente e O tempo das tribos.

Só que sua verve não se esgotou. Ele acaba de lançar Écosophie (Ecosofia). Impossível não recorrer a um clichê: Michel Maffesoli é como um bom vinho nacional (francês). Quanto mais velho, melhor. Quanto mais o leio, mais me convenço de que ele é quem melhor atualmente descreve o que somos, sentimos, desejamos e buscamos. Aquilo que ele escreve faz sentido, toca em algum ponto sensível do que fazemos. Maffesoli nunca se propõe a dar lições de moral ou a vender utopias. Não diz como o mundo deve ser. Não se comporta como guru ou líder revolucionário. Tenta mostrar como o mundo é. Ecosofia é um livro simples, cristalino, erudito e emocionante. Fala da importância do mistério na existência de cada um de nós. Uma vida sem fantasia, transcendência, imaginação, imaginário e sonho é pobre. A tentação de tudo racionalizar produziu esterilidade e miséria existencial. Estamos novamente em busca de raízes e de natureza.

Há décadas Maffesoli mostra que precisamos de vibração em comum, de convivência, de uma cultura do sentimento, de pertencer a alguma coisa intensa, de uma razão sensível, de compartilhamento de emoções e de transfiguração do cotidiano. Somos tribalistas, hedonistas, presenteístas, sedentos de calor social, de troca afetiva, de festa, de rituais, de sentidos duradouros ou provisórios e de comunhão. Queremos voar e ter os pés na terra, decolar e conservar nossas raízes, mudar e permanecer, alcançar conquistas científicas e conservar nossas crenças, mitos, fábulas e sonhos. O pior não vem normalmente dessa sabedoria popular, mas dos projetos purificadores, unificadores ou simplesmente propagadores da Verdade.

Bom de polêmica, quando necessário, Michel Maffesoli cutuca, apoiando-se em Charles Fourier, as “ciências incertas”, como economia e ciência política, que repetem lugares-comuns com a arrogância definitiva da frivolidade e da vaidade. Ecosofia, no entanto, vai muito além disso. Enfatiza a redescoberta da natureza, da terra-mãe, do “bio”, do contato, virtual ou presencial, do místico, do fantástico do cotidiano, da importância de ocupar-se com aquilo que dá aura e significação ao fazer de cada um. O “real” é bem mais do que a “realidade” dos detentores da árida verdade absoluta. Relativismo é saber colocar em relação, escutar as muitas vozes. O homem moderno quis separar natureza e cultura e dominar o natural com seus artifícios. O resultado devastador está por toda parte. A natureza cobra seu preço. Chegou a hora de sentir a vibração do solo.

A vida não encanta sem uma dose de sagrado. Muitas são as possibilidades de sacralização: “O mistério, vale lembrar, é o que não se deixa reduzir à simples razão raciocinante, ao pensamento. Isso nos obriga a compreender o mistério também a partir dos sentidos (...) Compreensão oriunda do sensível, muito mais complexo. É essa inteireza que faz do mistério o laço entre os iniciados, ou seja, que funda e fortalece uma comunidade de destino. Comunidade saída de um mesmo lugar e que cresce a partir de um mesmo território. Nunca é demais repetir: o lugar faz o laço”. Contra todos os espíritos racionalistas definitivos o homem comum continua a se alimentar de fantasias, sonhos, misticismos, rituais, esoterismos e sentimentos.

Enquanto os intelectuais oficiais criticam os jovens por seus jogos e gostos, Michel Maffesoli encontra no interesse por vampiros, bruxos e outras figuras desse tipo o eterno desejo de mistério e de fantasia. Nada que impeça de ser racional quando se faz necessário. Retorno ao pátio de casa: “Nesse sentido, a sensibilidade ecosófica é uma forma de empatia, de paixão intensa e comum, com o espaço onde nos situamos individual e comunitariamente. É, no sentido mais forte do termo, uma sintonia. Estar no tom do território em torno. A sintonia é o compartilhamento, a aliança instintiva com os produtos desse chão e com os seus usuários”.

Fusão entre homem e natureza.

Maffesoli e sua esposa Hélène curtem as filhas e os netos. O velho mestre, acostumado às críticas dos racionalistas e moralistas, mantém-se firme. O mundo é paradoxal. É preciso ter a cabeça nas nuvens e os pés no chão. Conclusão: “A contra-natureza não é mais do que o resultado lógico do culturalismo moderno que, na sua ideosofia, sempre pensou que era possível dominar a natureza reformando-a ou transgredindo suas leis intangíveis. O marasmo contemporâneo, que chamamos com frequência de crise, é a consequência inelutável de tal lógica de dominação levando a uma não menos lógica devastação”. Um belo livro.

Uma lição sem arrogância de sabedoria e de relativismo.

 

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