Memória afetiva

Memória afetiva

Meia Siza, um livro simples e emocionate

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      Ando emotivo. Enchi os olhos de água mais de uma vez ao ler “Meia Siza – Ignácia e Aramis: mãe e filho na luta pela sobrevivência no pós-abolição” (Pradense), de Marieta dos Santos da Silveira. Meia siza era o imposto cobrado na venda de escravos. Marieta conta a história do pai e da avó, descendentes de Aldina, vendida por um conto e duzentos mil réis, aos 21 anos de idade, em 1870, pelo farroupilha João Antônio da Silveira a Juvencio Josino do Rego Rangel. Do primeiro dono, Aldina recebeu o sobrenome Silveira, que transmitiu aos seus.

      O livro narra com simplicidade e espontaneidade a luta de Ignácia, filha de Aldina, pela sobrevivência e pela dignidade. Detalha a vida de Aramis em busca de um lugar social, de emprego com carteira assinada, da casa própria e da criação dos filhos sem ter, como era comum acontecer, de “dá-los” a algum branco que os adotasse em troca dos “servicinhos” que poderiam prestar. Aramis trabalharia 38 anos na termoelétrica Usina do Gasômetro, compraria, com financiamento, a sua casa em Teresópolis, onde teria horta, pomar e galinhas, ficaria viúvo duas vezes – casaria três – e educaria com esmero os seus seis filhos. Os combates contra a exploração no mundo do trabalho o levariam a admirar Getúlio Vargas e a guardar recortes de jornal, inclusive do Correio do Povo, sobre o líder trabalhista que instituiu a CLT.

      Memória afetiva, memória operária, memória de negros enfrentando preconceito e dificuldades de toda ordem, descreve suas ambições, sonhos, expectativas, conquistas, perdas, construções, organizações, como a “União dos Homens de Cor”, festas, crenças e apostas. Destaca-se um forte sistema informal de solidariedade: “Quando a tua mãe morreu, a Vó Ignácia chorava e dizia: o Aramis não tem sorte, nasceu pra criar os filhos sozinha”. Aramis, porém, não desistia. Uns abriam caminho para os outros. As personagens contam, como Dulcemira, o que fizeram: “Fui trabalhar na Fábrica Formosa por indicação da tua mãe, eu fui pra pregar botão e intermeio”. Orgulham-se dos trabalhos.

      Aramis conquistou a sua rotina: “Sair cedo para o trabalho, vir almoçar em casa, fazer sesta de 10 minutos, voltar para a usina, era o seu cotidiano. Às 19 horas estava de volta, tomava um aperitivo, Underberg, ia ouvir rádio (...) A única noite em que ele saía era para os compromissos de reunião do sindicato ou das eleições da categoria”. Chegou a ter um Ford Anglia 49 e uma lambreta. Aramis teve uma espécie de diário. Anotava, sem muita frequência, doenças, deslocamentos, falecimentos, projetos. “Meia siza” é um documento sobre homens e mulheres negros, pais e filhos, num tempo de racismo escancarado.

      Marieta dos Santos da Silveira nasceu em Porto Alegre, professora aposentada da rede estadual, formada em Letras, atuante no Movimento Negro. Fecho o livro dela, reabro, releio esta frase emocionante do altivo Aramis: “Eu nunca dei um filho meu, criei todos com ajuda da mamãe”. A vida era luta, fibra, orgulho e perseverança. Família e amigo constituam uma rede de amparo e estímulo. Bravo!


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