Memórias de um assassino arrependido

Memórias de um assassino arrependido

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Guerra suja(o)





Na falta do que fazer na vida, eu leio. É a minha maneira de matar o imenso tempo que me sobra todos os dias visto que não tenho caixa de ferramentas, carro para lustrar, filho para cuidar nem cachorro para passear. Leio. Tudo que me cai às mãos. Li, na semana passada, “Memórias de uma guerra suja”, depoimento de Cláudio Guerra a Marcelo Neto e Rogério Medeiros. Por causa do livro, Guerra está sendo ameaçado de morte. Um livro que leva o autor a ser ameaçado de morte me interessa. Dá até certa inveja. Guerra foi policial durante o regime militar. Hoje, é religioso. Arrependido, conta os seus crimes.

Quais? Foi assassino a serviço do regime  militar. Matou sempre que preciso.

Torturador?

Ele nega. Seria demais para ele.

Torturar, não.

Matar, sim.

Guerra dá nomes aos bois. Diz que trabalhou principalmente sob as ordens do coronel gaúcho Freddie Perdigão. Apresenta nomes de sua vítimas. Capricha nos detalhes. Garante que, ao final, participou de uma série de atentados montados para conturbar a transição à democracia, cuja culpa deveria recair sobre a esquerda. Explicita o seu método de execução: “Minha técnica foi sempre a mesma: dois tiros diretos no peito da vítima. Era o que bastava”. A narrativa é seca: “Foi em Belo Horizonte. Nestor Veras tinha sido muito torturado e estava agonizando. Eu lhe dei o tiro de misericórdia”.

Revela que se montou um esquema de incineração de corpos na Usina Cambahya, em Campos, Rio de Janeiro: “O forno da usina era enorme, ideal para transformar em cinzas qualquer vestígio humano”. Acrescenta: “E foi assim que fui responsável por levar dez corpos de presos políticos para lá, todos mortos pela tortura no DOI e na Casa da Morte, em Petrópolis, além dos cadáveres provenientes do DOI da Barão de Mesquita e os que vinham de São Paulo”.

A turma da tortura reunia-se num restaurante carioca chamado Angu do Gomes e numa sauna vizinha. Guerra dá a lista de artistas famosos, simpatizantes ao regime, Lúcio Mauro, Jece Valadão, Boni, que apareciam por lá, e de empresários que financiaram as operações clandestinas, um dos principais tendo sido Camilo Cola, dono da empresa Itapemirim: “O empresário, como arrecadador e financiador da repressão, recebia benefícios do regime militar. Ganhou várias concessões e sua empresa cresceu muito no período”. Olha a corrupção aí, gente.  Os donos das lojas Mappin também são apresentados como financiadores da repressão, além dos bancos Sudameris e Mercantil de São Paulo. Cláudio conta que participou de um atentado ao jornal Estado de S. Paulo, atribuído à esquerda. Afirma também que foi destacado para, vestido de padre, matar Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. O plano falhou. A ideia era comprometer uns cubanos que estavam no Brasil e “implicar a Igreja Católica”.

Um catálogo de iniquidades.

Para arrematar, Guerra informa que, na fase de decadência do dispositivo, o financiamento passou a ser feito pelo jogo do bicho. Último ato: “Quando o SNI começou a se desmantelar por conta da abertura política, houve uma série de assassinatos de pessoas que serviram ao regime, uma grande queima de arquivo comandada pelos militares, que temiam que seus crimes fossem revelados”. Talvez seja melhor eu comprar uma caixa de ferramentas.

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