Meus espantos

Meus espantos

Aglomerações, atitudes e pandemia

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Espantos

 

      Cronista não é quem explica as coisas, mas quem se espanta com elas. Eu me espantei com o anúncio da Copa América no Brasil. Já estava espantando com a permanência do futebol em meio à persistência da pandemia. Como é possível continuar com Libertadores, Brasileirão, eliminatórias e Copa do Brasil? Como é possível ir jogar na Argentina que, com toda razão, desistiu da Copa América? Eu me espanto com o mundo. O Japão vai manter os Jogos Olímpicos! Que loucura total. A humanidade tem condições tecnológicas de produzir vacina para imunizar toda a população mundial em poucos meses. Basta quebrar patentes e transferir tecnologia. Não quer. Tem outros interesses e objetivos.

      Eu me espanto e pago por isso. Sempre me espanto com os admiradores do presidente da República participando, com a presença dele, de atos públicos. Aglomerações sem máscaras. Fiquei espantado também com as manifestações da esquerda neste último final de semana. O uso de máscara era o diferencial. Mas, de tudo que pude aprender ouvindo médicos e cientistas, o uso de máscara não garante cem por cento de proteção. Fosse assim, dava para voltar a todas as atividades praticamente em regime de normalidade. A esquerda alegou que a sua exceção era justa, apesar de algum perigo, pela necessidade de manifestar força política em defesa de vacinas e de medidas mais eficazes contra pandemia. Não haveria outros meios? Uma semana de panelaço com piscar de luzes durante uma hora? Sei lá. Nada mesmo?

      Expressei meu espanto, em termos de proteção à saúde, nas redes sociais. Alguns se espantaram comigo e fizeram bem, pois eu que me espanto não posso negar o espanto aos outros. Sou formado na escola da independência. Aprendi que toda contradição deve ser questionada. Se for possível, compreendida. Nunca omitida. Espanto nas redes sociais pode virar cancelamento. Eu também cancelo pessoas quando me insultam. Meus braços são curtos. Minha mente é limitada. Tento ser sincero. A solidão é a pena de quem se espanta demais. Tenho um amigo revolucionário na juventude que diz: os independentes morrem primeiro. Claro que falando assim fica dramático e peço desconto pela ênfase. Como dizia um prosador, desculpem se não falei em versos soltos.

      Continuo a me espantar e a declarar meus espantos, que é uma maneira de dizer que a perplexidade antecede a complexidade. Para horror dos que odeiam minhas citações de franceses, sou fiel a um ensinamento de mestre Jean Baudrillard: “Não estar nunca onde se é esperado por fidelidade para se estar onde a consciência determina”. E outro do quase centenário Edgar Morin (cem anos em 8 de julho deste ano): não ser de ninguém por desejo de autonomia intelectual. Dito isso, eu me espanto com negacionistas, neofascistas, normalizadores apressados, neodesblumbrados e velhos indiferentes. Eu queria ter um saber que ajudasse a iluminar caminhos. Infelizmente a minha lanterna é uma vela que bruxuleia como um pirilampo na escuridão ventosa. Se não for verdade, é uma imagem. Talvez sirva para alguma biografia.


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