Meus paradoxos

Meus paradoxos

Sobre contradições e ideias

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    Chamamos de nossos paradoxos o que nos outros rotulamos de contradições. Tenho os meus, ou as minhas, que cultivo como flores do meu jardim. Odeio a xenofobia tanto quanto o vira-latismo. Detesto o fechamento aos de fora tanto quanto o menosprezo aos de dentro. Odeio o culto da modernidade tanto quanto o tradicionalismo dogmático. Rio do cientificismo positivista e beato e me horrorizo com o obscurantismo militante. Temo as verdades absolutas, quase sempre não provadas no tribunal da racionalidade e dos fatos, mas defendo que se relativize o relativismo, pois nem toda verdade depende de ponto de vista: a Terra não é plana, a covid-19 é disseminada por um vírus, não por uma bactéria, a dengue é transmitida por um mosquito, não por uma formiga.

    Admiro as demonstrações, as argumentações e a razão assim como me deslumbro com as emoções, os sentimentos e a sensibilidade. Dobro-me diante dos planejamentos, das relações de causa e efeito antecipadas e também dos efeitos do imponderável, do acaso, do imprevisto. Temo que a globalização produza, ao mesmo tempo, a maior abertura de todos os tempos ao diferente e distante e o apogeu do vira-latismo, gerando, sob a fachada da eliminação das fronteiras, uma nova fase do colonialismo, esse velho e ardiloso culto do moderno e do progresso como emanação de um centro, europeu, americano, branco, masculino, reino da mercadoria.
    Rejeito as simplificações tanto quanto as enrolações disfarçadas de complexidade. Diante de um vira-lata tendo a virar nacionalista. Face a um nacionalista cego, posso contar as virtudes do que vem de fora. Amo o equilíbrio instável ao mesmo tempo que aplaudo os arroubos, os rompantes, as irrupções do inesperado. Na literatura é o poema, no futebol, o drible, na música, o sublime instante em que a magia do talento individual supera a partitura. Defendo a prioridade ao coletivo, como bem público, e do individual, como liberdade de criação, de iniciativa e de expressão. Repudio as ditaduras de direita e esquerda. Repilo o comunismo e o neoliberalismo. Ando sempre meio de lado.
    Acredito tanto na ideia de independência intelectual que me sinto sozinho. Cada lado quer um adepto. Eu não pertenço a quem quer que seja. Não por grandeza, arrogância, genialidade ou projeto. Por personalidade. Não há mérito em ser o que se é por força da loteria da existência. Não há mérito em nascer rico ou com talento para isto ou aquilo. O importante é saber transformar em utilidade pública o que natureza concedeu. Odeio a prolixidade e o laconismo, os que falam demais e os que escondem tudo, o hermetismo vazio e a clareza simplória. Enfim.
    Não concebo a vida sem arte, o futebol sem dribles, as cidades sem árvores, o mundo sem diversidade, a existência sem livros, em qualquer suporte, o papel faz parte de uma bela época, mas não ficará para sempre, criança sem brinquedo, juventude sem ousadia, velhice sem dignidade. E daí? Daí que quando sopra o minuano eu me lembro do que fui, do que poderia ter sido, do que não fui nem serei e me contradigo.

 


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