Miguel: o menino e o cachorro

Miguel: o menino e o cachorro

Tragédia expõe um mundo às avessas

publicidade

      Intuo que a morte do menino Miguel, de cinco anos de idade, em Recife, diz muito sobre a nossa sociedade. Mas diz o quê? O roteiro é conhecido: patroa branca, esposa de político, edifício de luxo, empregada pobre, filho negro levado para o trabalho por não ter com quem deixá-lo. A patroa manda a empregada, que talvez chamasse de secretária em público e de criada no privado, passear com a sua cadelinha, que não tem culpa alguma na tragédia que se consumou. Numa imitação barata de Nelson Rodrigues, o enredo pode ser resumido nesta chamada em cartaz barroco saturado de cores e de palavras garrafais: “Cuide bem do meu cachorro que eu não farei o mesmo com o seu filho”.

      Enquanto a empregada zelava pelo cachorro na rua, a patroa negligenciava o menino em casa. Nas imagens das câmeras internas vê-se a patroa deixando o menino entrar sozinho no elevador. De quebra, ela aperta o botão do nono andar. A porta fecha e o guri fica entregue a si mesmo. Na imitação de Nelson Rodrigues esta pergunta é inevitável: a patroa deixaria o seu cachorro passear sozinho? Outro resumo desse filme de horror é este: mãe, obrigada a passear com cachorro de madame, deixa filho sozinho com a patroa, que se livra dele abandonando-o dentro de um elevador depois de apertar o botão de um andar. Por que a patroa não cuidou daquele menino como se fosse o seu filho? Por que era negro, pobre, filho da empregada, um estorvo na sua casa, um incômodo com o qual não sabia lidar?

      Insistamos num ponto: por que a mãe não estava com o seu filho? Porque, como quase todo mundo, precisava trabalhar. Qual era o seu trabalho no momento em que a criança caiu de uma altura de 35 metros? Cuidar de um cachorro. Por que a patroa não levou o cachorro para passear se não tinha paciência para se ocupar do filho da empregada? Por que não refletiu sobre o perigo de largar uma criança sozinha num elevador? Não poderia pensar, no mínimo, na possibilidade de o elevador trancar? A patroa possivelmente achava que já fazia muito aceitando que a empregada trouxesse o filho para o local de trabalho, a sua casa. O desespero da mãe que perdeu o filho será chamado de vitimismo? A patroa pegará uma pena leve a ser cumprida em liberdade? Rapidamente o assunto sairá das manchetes e será esquecido? Restará a dor de uma mãe que cuidava de um cachorro.

      A patroa falará em fatalidade. O marido prefeito talvez tente acionar os seus contatos. As imagens denunciam negligência. A sociologia remete, digamos, a uma irresponsabilidade estrutural, um desinteresse histórico, uma desatenção secular, uma hierarquia de afeições, um sistema de castas que se perpetua. Nessa lógica perversa pode uma patroa branca e rica se ocupar do filho negro da empregada pobre, que cuida da saúde mental do cachorro da família abastada, como se fosse seu? Esticando a leitura cruel e possivelmente acusada de simplificadora e maniqueísta, a patroa, se condenada, talvez se inquiete e pergunte em voz alta: “Se eu for presa quem vai cuidar da minha cadela?” Essa morte diz muito sobre como vivemos. Que lições tiraremos dessa tragédia? Tiraremos alguma?


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895