Minha seleção russa de todos os tempos
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Minha seleção é literária e joga no 4-3-3, o mais clássico de todos os esquemas, o mais ofensivo e bem distribuído, o mais plástico e estético, o mais natural e o mais evocativo da minha infância. Eis o escrete: Lérmontov; Gorki, Nabokov, Soljenítsin e Maiakovski; Turgueniev, Pushkin e Gogol; Tchecov, Dostoievski e Tolstói. Ainda bem que se pode colocar no banco mais 12 jogadores. Eis os meus: Osip Mandelstam, Mikhail Lomonossov, Mikhail Bulgákov, Isaac Babel, Mikhail Bakunin, Danil Kharms, Ivan Gontcharóv, Marina Tsvetáieva, Joseph Brodsky, Aleksandr Blok, Anna Akhmátova e Borís Pasternak. Timaço.
A grande dificuldade é a escolha das posições de cada um. Foram todos multifuncionais. Jogavam em todas. Por que Lérmontov no gol? Porque de todos os titulares é o que menos me encanta. Vira goleiro. Todos tiveram cacoetes de atacante. Todos deveriam vestir camisa dez. O Pelé desse time, contudo, foi Dostoievski. O meu predileto não é ele, mas Turgueniev. Nenhum me comoveu tanto. Li vinte vezes “Pais e filhos”. É justo colocar Maiakovski de lateral-esquerdo? Ele não deveria ser ponta-esquerda? Bem, é um 4-3-3 moderno. Maia, no futebol apelidos sempre foram admitidos, era quase um ala, ia e via radicalmente. Cada lance era um verso, um poema, uma nuvem de calças.
Os especialistas colocam o poeta Pushkin como o cérebro do time, o camisa dez por tradição, o monumento nacional por excelência e talento. Não vou discutir isso. Faço como Zagalo em 1970. Tento colocar os melhores no time fazendo adaptações. Na minha seleção mulher também tem vez. A história da literatura é dominada pelos machos brancos. Mas algumas escritoras furaram o bloqueio. Quem foi realmente melhor? Tchecov, Dostoievski e Tolstói? O comodista contenta-se em dizer que não é preciso escolher. Salvo se for entre Pelé e Maradona. A questão é sempre a mesma: critérios. O brasileiro garante que Pelé foi mais completo. O argentino alega que Maradona foi mais decisivo. Ingleses acreditam. Para fazer o nacionalista comodista cair em contradição basta colocar uma pulga atrás da sua orelha: Machado de Assis foi tão bom quanto Tchecov, Dostoievski e Tolstói?
Voltemos a Pushkin. Não era bobo esse cara. Basta ver esta pintura de jogada que ele fez: “Não choro, finda a primavera/ligeira, a rosa que definha,/pois, maturando numa vinha/ao pé do monte, a uva me espera”. Não vale um chapéu, um gol de bicicleta, uma janelinha, uma lembreta? Claro que sou mais o estilo arrojado de Maiakovski: “Costurarei calças pretas/com o veludo da minha garganta/e uma blusa amarela com três metros de poente./Pela Niévski do mundo, como criança grande,/andarei, don Juan, com ar de dândi”. Não é trivela? Sei lá. Grande arte, gol de placa, travessura, diabrura, talento bom e puro.
Tchecov dominou o passe curto, o jogo no espaço concentrado, o estilo que seria adotado por Guardiola. Dostoievski foi ao fundo da alma do jogador e do seu público. Tolstói foi épico. Cada frase era um painel de grandes proporções. Soljenítsin encarou o adversário e pagou caro. Nabokov explorou nuanças, sutilezas, entrelinhas. Hoje, tomaria cartão vermelho antes de entrar em campo. Gogol barbarizou. Jogava e ao mesmo tempo denunciava a crueldade do jogo. Deu um capote inesquecível na humanidade. Ah, isso é gíria de sinuca. Deu um lençol.
Por que Turgueniev me dominou? Por seu jogo anarquista. Ele cunhou o termo niilista. Que lance! Que marca! É como ter inventado a folha seca. Fico deslumbrado com seus gols de letra. O único, porém, que ainda me arranca lágrimas é Tchecov. Vou ficando emotivo e choro como chorei quando, aos 13 anos de idade, vi pela televisão o Inter ganhar o campeonato nacional. Literatura e futebol são muito próximos para mim. Jogo. Descobrimento. Ilusão. Fantasia. Emoção. Criatividade.
Vai, leitor, domina essa bola, mata no peito e bota chão, lançada pelo autor de “A dama e o cachorrinho? “A folhagem das árvores estava quieta, cigarras cantavam e o ruído surdo e monótono do mar, vindo de baixo, falava de repouso, do sono eterno que nos espera. Esse barulho já se fazia ouvir ali quando não havia nem Ialta, nem Oreanda; ele se faz ouvir agora e será assim também no futuro, surdo e indiferente, quando nós não mais existirmos. E nessa constância, nessa completa indiferença em relação à vida e à morte de cada um de nós, esconde-se, talvez, a garantia de nossa salvação eterna, do incessante movimento da vida na terra, do seu contínuo aperfeiçoamento".
Ninguém jogou mais do que os russos.