Minha seleção russa de todos os tempos

Minha seleção russa de todos os tempos

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É Copa do Mundo. Trato de escalar a minha seleção de todos os tempos. Adoro esse tipo de exercício. Eu me sinto um Deus designando os melhores. Copa na Rússia. Estive lá. Adorei aquele mundo gelado. Era agosto. Verão. E tudo tão fresquinho. Amei Saint-Petersburgo mais do que Moscou. Ainda tenho aquelas cores pastéis de muitos prédios nas retinas. Vou escalar a minha seleção russa de todos os tempos. Russa e universal. Tem Pelé, Garrincha, Maradona, Messi, Cristiano Ronaldo, Cruyff, Zidane, Platini, Romário, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Beckenbauer, Falcão, Neymar, só que todos russos. Passei parte da vida vendo os russos jogarem. Quero dizer, lendo os grandes craques russos.

Minha seleção é literária e joga no 4-3-3, o mais clássico de todos os esquemas, o mais ofensivo e bem distribuído, o mais plástico e estético, o mais natural e o mais evocativo da minha infância. Eis o escrete: Lérmontov; Gorki, Nabokov, Soljenítsin e Maiakovski; Turgueniev, Pushkin e Gogol; Tchecov, Dostoievski e Tolstói. Ainda bem que se pode colocar no banco mais 12 jogadores. Eis os meus: Osip Mandelstam, Mikhail Lomonossov, Mikhail Bulgákov, Isaac Babel, Mikhail Bakunin, Danil Kharms, Ivan Gontcharóv, Marina Tsvetáieva, Joseph Brodsky, Aleksandr Blok, Anna Akhmátova e Borís Pasternak. Timaço.

A grande dificuldade é a escolha das posições de cada um. Foram todos multifuncionais. Jogavam em todas. Por que Lérmontov no gol? Porque de todos os titulares é o que menos me encanta. Vira goleiro. Todos tiveram cacoetes de atacante. Todos deveriam vestir camisa dez. O Pelé desse time, contudo, foi Dostoievski. O meu predileto não é ele, mas Turgueniev. Nenhum me comoveu tanto. Li vinte vezes “Pais e filhos”. É justo colocar Maiakovski de lateral-esquerdo? Ele não deveria ser ponta-esquerda? Bem, é um 4-3-3 moderno. Maia, no futebol apelidos sempre foram admitidos, era quase um ala, ia e via radicalmente. Cada lance era um verso, um poema, uma nuvem de calças.

Os especialistas colocam o poeta Pushkin como o cérebro do time, o camisa dez por tradição, o monumento nacional por excelência e talento. Não vou discutir isso. Faço como Zagalo em 1970. Tento colocar os melhores no time fazendo adaptações. Na minha seleção mulher também tem vez. A história da literatura é dominada pelos machos brancos. Mas algumas escritoras furaram o bloqueio. Quem foi realmente melhor? Tchecov, Dostoievski e Tolstói? O comodista contenta-se em dizer que não é preciso escolher. Salvo se for entre Pelé e Maradona. A questão é sempre a mesma: critérios. O brasileiro garante que Pelé foi mais completo. O argentino alega que Maradona foi mais decisivo. Ingleses acreditam. Para fazer o nacionalista comodista cair em contradição basta colocar uma pulga atrás da sua orelha: Machado de Assis foi tão bom quanto Tchecov, Dostoievski e Tolstói?

Voltemos a Pushkin. Não era bobo esse cara. Basta ver esta pintura de jogada que ele fez: “Não choro, finda a primavera/ligeira, a rosa que definha,/pois, maturando numa vinha/ao pé do monte, a uva me espera”. Não vale um chapéu, um gol de bicicleta, uma janelinha, uma lembreta? Claro que sou mais o estilo arrojado de Maiakovski: “Costurarei calças pretas/com o veludo da minha garganta/e uma blusa amarela com três metros de poente./Pela Niévski do mundo, como criança grande,/andarei, don Juan, com ar de dândi”. Não é trivela? Sei lá. Grande arte, gol de placa, travessura, diabrura, talento bom e puro.

Tchecov dominou o passe curto, o jogo no espaço concentrado, o estilo que seria adotado por Guardiola. Dostoievski foi ao fundo da alma do jogador e do seu público. Tolstói foi épico. Cada frase era um painel de grandes proporções. Soljenítsin encarou o adversário e pagou caro. Nabokov explorou nuanças, sutilezas, entrelinhas. Hoje, tomaria cartão vermelho antes de entrar em campo. Gogol barbarizou. Jogava e ao mesmo tempo denunciava a crueldade do jogo. Deu um capote inesquecível na humanidade. Ah, isso é gíria de sinuca. Deu um lençol.

Por que Turgueniev me dominou? Por seu jogo anarquista. Ele cunhou o termo niilista. Que lance! Que marca! É como ter inventado a folha seca. Fico deslumbrado com seus gols de letra. O único, porém, que ainda me arranca lágrimas é Tchecov. Vou ficando emotivo e choro como chorei quando, aos 13 anos de idade, vi pela televisão o Inter ganhar o campeonato nacional. Literatura e futebol são muito próximos para mim. Jogo. Descobrimento. Ilusão. Fantasia. Emoção. Criatividade.

Vai, leitor, domina essa bola, mata no peito e bota chão, lançada pelo autor de “A dama e o cachorrinho? “A folhagem das árvores estava quieta, cigarras cantavam e o ruído surdo e monótono do mar, vindo de baixo, falava de repouso, do sono eterno que nos espera. Esse barulho já se fazia ouvir ali quando não havia nem Ialta, nem Oreanda; ele se faz ouvir agora e será assim também no futuro, surdo e indiferente, quando nós não mais existirmos. E nessa constância, nessa completa indiferença em relação à vida e à morte de cada um de nós, esconde-se, talvez, a garantia de nossa salvação eterna, do incessante movimento da vida na terra, do seu contínuo aperfeiçoamento".

Ninguém jogou mais do que os russos.

 

 

 

 

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