Miséria infantil

Miséria infantil

publicidade

Pobre infância

 

Sim, com certeza, eu queria ser otimista e todo dia desfilar palavras encantadas sobre o mundo que nos cerca. Sim, sem dúvida, eu adoraria distrair, deslumbrar e embalar sonhos de felicidade. Não consigo. É mais forte do que eu. A leitura diária dos jornais me joga num abismo de desesperança. Os dados alardeados por governantes não me comovem, não me convencem, raramente me emocionam. Ontem, ainda, eu li sobre o relatório da Fundação Abrinq, ““Cenário da Infância e da Adolescência no Brasil”. Qual é esse cenário? Um filme desolador.

Resumo da tragédia em tons que não permitem hesitações: “40,2% daqueles que têm até 14 anos vivem em situação de pobreza; cerca de 4 milhões de crianças moram em favelas; e 17,5% das adolescentes foram mães antes dos 19 anos”. O que esperar de um país que se atola no presente, sente nostalgia da ditadura e não vislumbra o futuro? No Nordeste brasileiro, 60% das crianças vivem na pobreza. No Norte, 54%. Que candidato à presidência da República tem no seu programa uma solução exequível para esse vasto problema? Que candidato pretende, de fato, enfrentar a questão e começar a arrancar crianças e adolescentes dessa condição que os condena, na maioria, a uma dura vida adulta?

A situação já foi pior? Heloisa Oliveira, administradora executiva da Abrinq, declarou ao jornal O Globo que em certos quesitos nada mudou. Numa frase lacônica, ela desenhou a realidade sombria:

— Não houve redução no trabalho infantil sob o conceito que nós trabalhamos.

Noutra afirmação, não menos sucinta e devastadora, cravou:

– É possível ver que o que permeia tudo é a pobreza e a desigualdade.

Como pode alguém não ver que o problema brasileiro tem nome: desigualdade. Como pode alguém ignorar que sem atacar esse fosso que separa a maioria da minoria não há futuro nem presente com dignidade? O que dizer deste outro indicador contundente? Não há creche disponível para 70% das crianças que precisam desse serviço no país.

O estrago é completo. Jovens abandonam a escola em massa, são vitimados em assassinatos com arma de fogo, ficam à mercê das drogas, perdem a crença no trabalho, que não encontram, ficam sem norte, extraviam-se em caminhadas sem rumo, esperam a ajuda que não chega, não encontram onde se agarrar, padecem de falta de apoio, de orientação, de carinho e de perspectiva. Andam pelos nossos desertos urbanos à procura de oásis que não oferecemos nem pensamos construir.

Sim, eu amaria poder ser todo dia humorista, brincalhão, criativo, divertido, leve, surpreendente, agradável, poético, elétrico, lírico ou suave como essas brisas que me embriagam. O termo é inapropriado? Não. Há ventos tão suaves que se tornam inebriantes. Saio, às vezes, para me embebedar de brisa e sonhar com maresias. Tudo isso quando a realidade não me acabrunha, devasta e nocauteia. Eu gostaria tanto de pensar que o principal assunto da semana é o nascimento do terceiro filho dos herdeiros do trono britânico. Que linda crônica eu poderia escrever se não estivesse tão melancólico.

 

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895