Moral de duas histórias de Palomas

Moral de duas histórias de Palomas

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O passageiro

Rafael Vidal desembarcou em Palomas em 21 de abril de 1973. Desceu do trem de passageiros no único momento de uma tarde chuvosa em que o sol atravessou as nuvens e lambeu o campo ao lado da estação transformando-o numa nesga clara. Vestia-se inteiramente de branco, exceto por um lenço de cor indefinida que lhe escondia o pescoço, e anunciou o seu nome ao telegrafista na busca de um lugar para se instalar. Era alto, moreno, cabelos desgrenhados e olhos muito verdes.
Trazia como única bagagem uma bolsa de couro a tiracolo. Devia andar pelos 30 anos. Era um homem bonito, apesar da barba por fazer, e do aspecto cansado do seu rosto anguloso. Parecia mover-se em câmera lenta.
Antes de entrar estação, Rafael ficou contemplando o trem desaparecer no Alto Grande, entre os eucaliptos do horto, cuja silhuetas se alongavam para o céu como se fossem agulhas ligeiramente vergadas pelo vento. Depois, já com um endereço, caso se possa chamar de endereço uma indicação aproximativa de um lugar a localizar, atravessou a vila com um passo oscilante, embora contínuo. Foi observado por quase todos os moradores do povoado. As moças solteiras grudaram-se nas vidraças para vê-lo, esguio e taciturno, avançar em direção à rua de baixo. Os homens ergueram a cabeça para avaliar o estranho personagem que caminhava absorto. Passou em frente ao bar do Leto, onde, acotovelados no pequeno espaço entre a porta e o balcão, cinco gaúchos de bombacha e alpargatas bebiam cachaça pura em copos de um vidro fosco. Todos se calaram imediatamente.
Durante uma semana, num quarto no fundo do pátio da casa do Nico, Rafael se manteve alheio ao fato de que todos só falavam nele. Passava os dias lendo e corrigindo um manuscrito numa língua estranha, ainda que todas as línguas escritas fossem estranhas para a maioria dos palomenses, que tanto podia ser o árabe quanto outra qualquer. Todas as tardes, vestia a sua roupa branca para ir à estação ver a chegada do trem de passageiros. Em seguida, fazia a sua lenta caminhada de volta, despertando a atenção das moças, dos homens e, principalmente, das velhas. Rapidamente surgiram boatos e certezas sobre a identidade do visitante: um assassino foragido de uma prisão de São Paulo, sussurravam os homens, sem esclarecer a preferência por São Paulo; um tupamaro, informavam as velhas; um solitário tentando esquecer um grande amor, suspiravam as gurias, fechando revistas de fotonovelas e abrindo o coração.
O efeito Vidal foi imediato: Sônia, aos 17 anos, considerada a mulher mais bonita de Palomas, se apaixonou por ele. Isabel, a solteirona esperançosa, também. O ódio dos homens não tardou a se manifestar. Tentaram atrair Rafael para uma conversa. Ele não se recusou a trocar algumas palavras, mas se manteve discreto, mal umedecendo os lábios com a canha. Soube-se apenas que era brasileiro, falava com uma voz arrastada e sorria quando lhe faziam perguntas muito diretas. “Tu és um tupamaro?”, questionou Firmino, conhecido por sua violência com os animais. “Quantos matou?”, quis saber o Leto, que, como dono do bolicho, julgava-se no direito de ter a ficha completa dos fregueses, poder que disputava com as tantas velhas de Palomas, quase sempre mais informadas e mais cruéis.
Foi no dia 2 de junho que tudo aconteceu. A velha Marciana deu o alarme: havia um corpo balançando preso a um galho de cinamomo no fundo da casa do Nico. Ainda não eram oito horas da manhã e uma brisa muito agradável soprava. Os 300 habitantes de Palomas – com exceção dos cinco doentes que já não podiam sair da cama e dos que moravam mais longe e não souberam a tempo – correram para a rua de baixo. No caminho, receberam informações desencontradas: o enforcado era um homem todo de branco; era uma mulher ainda muito jovem; era um desconhecido descido do trem de carga na madrugada anterior; era um morto cujo retrato todos conheciam do túmulo bem na entrada do pequeno cemitério.
O morto era mesmo Rafael. Não deixava ninguém para chorar por ele. Naquela mesma tarde, depois que a polícia se encarregou do corpo, Nico embarcou no trem de passageiros na direção de Santana do Livramento. Vestia-se todo de branco, tinha os olhos mais verdes do que nunca e uma expressão de imensa fadiga. Sobre o caixote que servira de mesa-de-cabeceira ao visitante ficara o manuscrito. Talvez escrito em árabe, talvez em aramaico...


Um certo Charle B.

Quando Charles Baudelaire desembarcou em Palomas causou estranheza. A palidez excessiva, quase esverdeada, do seu rosto, contrastando com o negrume dos cabelos e a brancura dos dentes, pareceu imediatamente um mau sinal. Ele se afastou da estação como se conhecesse todos os atalhos e dirigiu-se ao bolicho do Vargas. Pediu absinto. Ninguém sabia o que era. Serviram-lhe um martelo de cachaça. Ele bebeu um gole e estalou os lábios: “Pouco álcool”, falou. Em seguida, empinou o copo e pediu outro. Calou-se. Indiferente ao que lhe diziam ou ofereciam, ele rabiscou num bloco amassado palavras incompreensíveis. Um poema, disse, ao ver a Luísa, do alto dos seus 15 anos, com sua cabeça mole e preguiçosa de jovem elefante e os seus peitos feito duas plantas carnívoras, passando num doce e venenoso balanço a caminho do arroio. Charles sorriu.
Depois, perguntou onde ficava o bordel. Jogou um punhado de moedas sobre o balcão e convidou os homens que bebiam sem pressa para fumar um pouco. Garantiu que os ajudaria a encontrar o absoluto, o belo e o indecifrável. Ninguém entendeu o que ele pretendia, mas o aceitaram como mais um louco na aldeia. Fumaram ópio. A vida em Palomas transformou-se radicalmente. Em pouco tempo, Charles B., como assinava os poemas que fazia acocorado no canto da casa onde alugou um quarto, conseguiu produzir absinto. Organizaram um prostíbulo. Às vezes, Charles ficava sorumbático e maldizia um tal de Aupick. Outras vezes, declarava o seu amor pela mãe e a acusava de traição. Os homens gostavam mesmo era quando ele afirmava ter herdado uma fortuna imensa do seu pai, um ex-padre. Gostavam ainda mais quando ele recitava os seus poemas ou improvisava pequenos discursos sobre a orgia, a festa e o sagrado.
As mulheres ficaram alarmadas. A velha Marcolina declarou sem vacilar: “Esse francês não é um homem, mas uma reencarnação”. Os homens não queriam mais trabalhar. Pretendiam ser poetas. Atravessavam as noites no bordel, onde prostitutas castelhanas tentavam falar francês, e os dias dormindo ou improvisando versos para as madrugadas. Um clima de decadência tomou conta do vilarejo. Vargas, contente com o aumento da freguesia, embora preocupado com o crescimento de algumas dívidas, embora Charles pagasse por quase todo mundo, explicava que não se tratava de decadência, mas de modernidade. Nésia, beirando os cem anos, garantia que tudo aquilo não passava de perdição. Lançou um anátema: “Maldito seja para sempre esse francês”.
O visitante pediu que lhe arranjassem putas negras. Aceitava pagar o que pedissem. Trouxeram-lhe a Almerinda, neta do velho Flores, que havia sido escravo e ainda vivia numa cabana à sombra de um umbu centenário cuidando de uma dezenas de filhos e duas dezenas de netos. Uma noite, o francês fez com que as mulheres se dessem em espetáculo para os homens, beijando-se, lambendo-se e gemendo. Outra noite, deitou-se com três meninas e dormiu sem ter feito nada. Palomas vivia, enfim, os seus dias mais agitados. Quando Charles passava, no seu passo incerto, ouviam-se cochichos, insultos, suspiros e até gritos de admiração ou de repulsa. Ninguém mais se lembrava do passado.
Um dia, o francês leu um poema para Luísa. Disse-lhe que ela parecia a serpente dançando em torno de um bastão. Ela adorou. E deitou-se com ele. Fizeram amor como se fossem duas feras. Rasgaram-se as roupas, lanharam-se os corpos, escandalizaram os passantes, soltaram guinchos de prazer. As velhas os rotularam de selvagens. O francês mandou Luísa desfilar nua pelas ruas de Palomas. Ela o fez cheia de orgulho das suas coxas e dos seus outros lábios, mais abertos e mais sábios à vista de todos. As velhas, então, organizaram uma passeata contra Charles. Ao cair da tarde, percorreram a rua de cima gritando: “Fora, maldito”.
O dinheiro havia acabado. Charles já devia para todos por conta da sua imensa fortuna. Foi aí que ele surtou. Entrou num delírio bizarro e passou a falar só em alexandrinos. Ameaçou se jogar embaixo do trem. Mas, finalmente, nele embarcou sem se despedir de ninguém. Ficaram todos atônitos. Os homens voltaram a trabalhar. Certas tardes, bebem até cair. Sentem saudades de poesia. As putas ficaram para aproveitar o mercado, embora já não tão rentável. Vargas tentou sem sucesso produzir absinto. As velhas ainda se bezem só de pensar no demônio.
Luísa perdeu a razão. E teve um filho.


Moral dessas histórias: a vida é amoral.












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