Moral política antikantiana

Moral política antikantiana

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      Vez ou outra, deve-se começar um texto com uma fórmula pomposa: a política brasileira é antikantiana. Já imagino o furor de alguns. Há quem corra para o google. Outros, mais rápidos, escrevem e-mails protestando. Immanuel Kant foi um sujeito estranho. Dizem que não se casou, embora estivesse apaixonado e fosse correspondido, por ter feitos os cálculos. Racionalmente falando, na ponta do lápis, não teria os meios para garantir um matrimônio feliz. Dispensou a moça.

Kant era homem de imperativos categóricos. Não admitia a mentira nem para o bem. Uma crítica debochada afirmava que se Kant escondesse a vítima potencial de um assassino e este perguntasse pela presa, o filósofo teria de dizer a verdade. A anedota mais famosa sobre Kant garante que seus vizinhos acertavam os relógios pela hora do passeio diário do pensador. Enfim, um homem de método. Kant concebeu uma norma moral categórica: age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. Em outras palavras, só faças aquilo que aceitarias que fizessem contigo.

A máxima da política brasileira é o oposto: age só segundo uma fórmula tal que ela possa atingir os teus adversários, mas jamais a ti mesmo. Ou seja, cobra dos outros aquilo que não cobrarias de ti mesmo ou dos teus. Acusa os outros daquilo que perdoarias em ti e nos teus. Condena os outros pelo que absolverias em ti e nos teus. Usa os regulamentos para punir os teus adversários e trata de mudá-los, se possível usando até projetos dos atingidos, para te proteger de efeitos equivalentes. Três dias depois do impeachment de Dilma, o Senado aprovou uma mudança na lei dos decretos de suplementação orçamentária flexibilizando alguns itens. O projeto, concebido ainda no governo Dilma, só recebeu aprovação na última sexta-feira.

A agência Senado noticiou assim a aprovação da nova lei: “O projeto amplia, de 10% para 20%, o limite para suplementação e cancelamento de subtítulos da LOA de caráter geral, que se aplicam ao maior número de ações orçamentárias. Segundo o Executivo, o percentual de 20% permite que os gestores públicos tenham mais flexibilidade ao fazer ajustes necessários no orçamento, principalmente em anos de restrição de receitas”. O que era crime ontem, não é mais crime hoje? O crime não começa mais depois de 10%, mas depois de 20%? É o escalonamento criminal? Até 20 facadas, legal. A vigésima-primeira facada caracteriza crime? Kant entenderia?

Ricardo Lodi, professor da UERJ, testemunha de Dilma, escreveu: “o Congresso Nacional, que nunca considerou as condutas supostamente praticadas pela Presidente Dilma como ilícitas, encerrado o processo de impeachment, passa a considerar tal conduta como absolutamente legitimada. Ou seja, até ontem consideravam crime, hoje é uma conduta admitida. Isso confirma o que eu disse no sábado no Senado. A conduta não era ilícita antes e nem seria depois. Só foi considerada crime para a aprovação do impeachment”. Já outros especialistas garantem que nada mudou com a nova lei, salvo a possibilidade de realocar e redefinir prioridades sem aumentar gastos. Uau!

E aí, velho Kant?

 

 

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