Moralidade comparada

Moralidade comparada

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 – Chega de ideologia – era o que gritavam os defensores do impeachment da presidente Dilma quando havia manifestações e panelas.

Depois da ascensão de Michel Temer, tudo mudou. A delação da Odebrecht vaza como a defesa do Inter: Michel Temer e Eliseu Padilha teriam recebido R$ 10 milhões em dinheiro vivo. Quem se importa? José Serra teria sido aquinhoado com R$ 23 milhões da empreiteira em caixa dois. E daí? O superministro da Fazenda, o endeusado Henrique Meirelles, nada fez até agora, mas promete fazer muito. A gastança aumentou satisfazendo parte do funcionalismo e governadores. O empresariado, porém, dá sinais de contentamento. Sabe que, depois do impeachment confirmado, virão as coisas sérias: o desmonte da CLT.

Por que as acusações não abalam José Serra? Porque os críticos do ideologismo gostam das suas declarações pragmáticas contra a Venezuela. Por que as acusações a Michel Temer não colam nele? Porque é homem, branco, rico e promete o que os donos do capital querem ouvir. Tudo se negociará: até férias e décimo-terceiro salário. Por enquanto, o quadro é avassalador: as bolsas de iniciação científica do CNPq caíram 20%; o Ciência sem Fronteiras não abrange mais alunos de graduação; fala-se em limite para investimentos em educação; o Minha Casa Minha Vida perdeu o teto; portar cartaz com “fora, Temer” resultou em “condução coercitiva” para fora de recinto olímpico.

O déficit fiscal dobrou. A arrecadação caiu R$ 12 bilhões. Mas o mercado comemora. O futuro é promissor. O pior passou. A corrupção não interessa mais. Nunca interessou. Foi só um pretexto. A coerência, palavra tão anacrônica, pressupunha um roteiro linear: caça a todos os corruptos. Se o PT deve sair por corrupção, o PMDB também. Se Dilma não serve, pelos malfeitos do seu partido, Temer também não. Dilma nunca foi citada diretamente como tendo recebido ou pedido dinheiro. Não é de duvidar que isso venha a acontecer. No mar tenebroso das delações, há muito a vir à tona. Michel Temer, no entanto, já é tri. Pode até pedir música no Fantástico da Rede Globo.

O petista André Singer, colunista da Folha de S. Paulo, fez uma síntese perfeita do milagre praticado pelo doutor Temer: “Simples: unificou as classes dominantes e esvaziou a reação das dominadas”. Até petistas conseguem, vez ou outra, perceber a realidade. O aumento aos ministros do STF será a cereja do bolo. O líder governista no TSE e no STF, Gilmar Mendes, andou querendo a cassação do registro do PT.

Alfinetado, o antigo batedor de panelas contra a corrupção petista dispara o seu argumento de ocasião predileto e ardiloso:

– Como se isso justificasse as roubalheiras do governo afastado.

Não justifica mesmo. Nem o fato de que, no combate à corrupção, os senadores afastarão uma presidente acusada diretamente de crime administrativo e entronizarão um presidente citado em acusações por receber propina (gravação de Eduardo Cunha com Léo Pinheiro), dinheiro de caixa dois (Marcelo Odebrecht e Sérgio Machado) e “pedágio” (caso do Porto de Santos envolvendo Erika Santos). Na moralidade comparada, acusações de ladroagem direta valem menos. O impeachment de Dilma blindará Michel Temer de qualquer investigação.

Quem diz que tudo se resume a lembrar que os outros também roubaram, sofisma.

Dilma ainda não foi acusada pessoalmente de ter roubado.

Eu não a defendo.

Constato.

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