Mortos e vivos na cultura brasileira

Mortos e vivos na cultura brasileira

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Messi é melhor do que Pelé? Lima Barreto foi melhor do que Machado de Assis? Eu posso ser melhor do que Sérgio Buarque de Holanda? Quando alguém se torna mito não pode mais ser contestado. Examinemos essa situação gelidamente. Juan Manuel Fangio é um mito da fórmula 1. Michael Schumacher foi melhor que ele. Por que o mesmo não poderia acontecer em outras áreas? Racionalmente nada impede que o presente suplante o passado. O Brasil tem três intelectuais míticos: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.

Os três escreveram livros marcantes. Os três erraram feio no principal.

Caio Prado era marxista. A sua matriz de pensamento faliu.

Sérgio Buarque ficou famoso com um bordão publicitário: o brasileiro é um homem cordial. Ela não queria dizer gentil, se bem que jogava com a dubiedade da afirmação, mas impulsivo, emocional, dominado pelo coração. É falso. Não há essência da brasilidade. Há brasileiros cordiais e brasileiros que não o são. A tese é furada. Freyre acertou na importância da miscigenação na cultura brasileira e errou feio na ideia de que seríamos uma espécie de democracia racial. Aí está: nossos melhores pensadores deram com os burros n’água no que pensaram de melhor ou de mais original. Somos a terra de intelectualidade fracassada, mas famosa positivamente pelos seus erros infantis.

Garricha não terá sido melhor do que Pelé? O eterno camisa 10 fez mais gols e ganhou mais títulos. Esse deve ser o parâmetro? Há quem diga que não se pode comparar jogadores de posições diferentes. São os mesmos que recusam qualquer dúvida sobre o fato de Pelé ter sido o melhor de todos os tempos. Comparam, portanto, Pelé até com goleiros. Eu gosto mais de Garrincha e de Lima Barreto. Policarpo Quaresma me emociona mais do que Bentinho e seus chifres imaginários. A questão mais importante, obviamente, é: eu posso ser melhor do que Sérgio Buarque de Holanda? Lá em Palomas, alguém gritaria: “Mas vai te deitar, vira-lata!” Eu sou vira-lata. Sem complexos. Ninguém é melhor por autodeclaração. Mas não é proibido ser megalomaníaco. Para Augusto Comte, que orna a bandeira brasileira com um pedaço de frase, “ordem e progresso, nossos positivistas cortaram a palavra amor, os mortos governam os vivos. Eu me rebelo. Em nome do presente, tomo o poder.

Os mais jovens não viram Pelé jogar e talvez jamais leiam Freyre, Buarque e Caio, exceto para alguma prova de concurso. Quem escreveu “Casa Grande & Senzala?” A) Machado de Assis B) Sérgio Buarque de Holanda C) Juremir Machado da Silva D) Gilberto Freyre E) Caio Prado. Impossível? Sérgio já se tornou o pai de Chico, que um garoto petulante chamou de “esse senhor” e outro, mais humilde, de tio. Nossos elefantes deixaram marcas. Nossos contemporâneos não têm memória. Salvo o google. O último grande escritor surgido no Brasil foi Guimarães Rosa, cuja obra-prima saiu há 50 anos, em 1967. O próximo serei eu. Estou em surto? Sim? Acabou o remédio. O psiquiatra viajou. A vida é assim.

Tudo é possível. Nem Pelé está garantido.

 

 

 

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