Mulher sob palmeira: quadros do cotidiano

Mulher sob palmeira: quadros do cotidiano

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 Toda manhã, às 7h40min, eu atravesso a Osvaldo Aranha na frente do Pronto Socorro. Passo para a lateral do corredor de ônibus. Sob a terceira palmeira, no sentido bairro-centro, uma mulher ainda jovem faz a sua toalete. Ela escova os dentes, penteia os cabelos, anda de um lugar para outro como quem vai do banheiro ao quarto e do quarto ao banheiro. Dobra meticulosamente suas roupas, que guarda numa mochila. Fala sozinha. Tem uma voz de menina. Discute. Tenta ser firme. Diz:

– Ninguém vai me obrigar a fazer isso. Não mesmo.

Ela dorme sob a marquise dos prédios que ficam entre a Ramiro Barcelos e a Venâncio Aires. Faz anos que eu a acompanho. Vez ou outra, some por cinco dias, pouco mais, pouco menos, uma semana. Quase sinto falta de vê-la atarefada na sua “casa” de paredes invisíveis:

– Estará num abrigo – me pergunto sem mover os lábios.

– Talvez numa clínica – me respondo em pensamento.

– Por que sempre faz sua higiene no mesmo lugar? – me questiono.

– Precisa de referências – tento me explicar.

– É bonita. Como faz para não ser estuprada nas noites de rua?

– Quem diz que não é?

Será machista a pergunta que me faço? É possível. Eu já a vi em manhã suaves, com a brisa soprando e a luz se infiltrando como uma benção. Eu já a vi em dias cinzentos e tão tristes quanto seus olhos, que me atrevi a buscar por um segundo num arroubo que me custou uma eternidade de ousadia. Eu já a vi calada e distante. Só não a vi em dias de chuva. Onde se abrigará? Sempre pensei que ela sumiria em pouco tempo assim como sumiu o homem que gritava na outra margem do corredor, o velho que corria em sua cadeira de rodas, o cara que defecava contra a coluna na frente da ótica, o sujeito vindo do interior com seu cachorro e tantos outros cujas biografias nunca escreverei nem tive a coragem de apurar mesmo que fosse para o rodapé cruel da vida dos passantes apresentados como eu, pressupondo-se que tenhamos mais biografias do que eles por termos casa para morar.

Não sei o nome dela. Eu a chamo de “a mulher que faz a sua toalete sob a terceira palmeira da Osvaldo Aranha”. Quando não a encontro, quase me preocupo. Digo quase para não me dar um papel de solidariedade que não exerço. Quando a revejo, paradoxalmente me preocupo. Ela continua a falar sozinha, a delirar, a repetir:

– Eu tenho a minha pra viver, ora!

Já escrevi sobre ela? Não quero crer. Seria mais uma indelicadeza. Mais uma prova da nossa (minha) indiferença. Não lembrar. Os moradores de rua me assustam e fascinam. Tenho medo de vir a ser como eles. Escrevi a palavra “medo” com a convicção de ter cometido um preconceito. Não pude evitar. Não saberia ser verdadeiro de outro jeito. Escrevi sobre outra cena de rua que me comove. Recebi uma dezena de mensagens. Escrevi sobre um tal de Evaristo Costa. Recebi centenas de elogios e críticas. Outro dia, me perguntei: como será quando a mulher não fizer mais a sua toalete sob a palmeira? Torço que ela vença essa fase, mas sentirei a sua falta. Ela faz parte da paisagem, esse quadro melancólico das manhãs que não nos espantam.

https://youtu.be/opxq3zWnz4E

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