Mulheres anônimas na Legalidade

Mulheres anônimas na Legalidade

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Mulheres na Campanha da Legalidade

Lívia Amarante Gallo

A década de 1960 foi marcada por vários acontecimentos políticos no Brasil, entre eles a Campanha da Legalidade. Em 1961 o Brasil era governado pelo presidente Jânio Quadros, que tinha como principal proposta “varrer” a corrupção do país. O mundo estava dividido entre a influência política dos Estados Unidos, com o capitalismo, e da União Soviética, com o socialismo, ambos tentavam implantar, nos outros países, os seus sistemas. O Brasil fez parte do sistema capitalista. Quando Jânio Quadros assumiu a Presidência, adotou uma política externa independente, tendo relações com países socialistas, o que não agradou aos Estados Unidos. Jânio Quadros renunciou no mesmo ano que tomou posse, alegando que “forças ocultas” se “levantaram” contra ele. João Goulart, vice-presidente, estava na China em ações diplomáticas no dia da renúncia. Por temerem que João Goulart fizesse do Brasil um país socialista, ministros militares decidiram descumprir a Constituição e impedir que João Goulart assumisse a Presidência do Brasil. Essa ação fez com que houvesse uma grande campanha no Rio Grande do Sul comandada pelo então governador do estado, Leonel Brizola, para que a Constituição fosse cumprida e o vice-presidente assumisse seu cargo. Com a movimentação que houve em Porto Alegre, muitas famílias, principalmente as que moravam perto da capital do estado, participaram das questões da política brasileira, de modo que, por ter sido uma campanha muito popular, diversas mulheres gaúchas acabaram se envolvendo. No entanto, de acordo com os diferentes meios e regiões em que viviam, fez com que houvesse várias formas de percebê-la.
Ainda que a maior parte das mulheres não participasse diretamente da Campanha da Legalidade, é importante compreender a visão que tinham do movimento, principalmente porque elas faziam parte da sociedade e, mesmo sendo difícil para a maior parte delas compreender os acontecimentos, tinham sua opinião sobre eles. Essa opinião não era formada necessariamente por visões políticas, mas principalmente pelo que sentiam na época. Conhecendo os pontos de vista de algumas mulheres de diferentes meios, é possível ver como suas famílias, empregos e lugares onde moravam influenciaram no modo como elas reagiram em meio ao movimento. É importante conhecer suas visões sobre a Legalidade para compreendermos que esta não foi feita somente de acontecimentos políticos, mas também de pessoas que tiveram suas vidas afetadas por eles.
Através de entrevistas com oito mulheres de 65 a 80 anos que viveram a campanha e moravam em diversas partes do Rio Grande do Sul, tentamos compreender qual era a percepção que essas possuíam no período da Legalidade. Constatamos que as idades que tinham na época, os lugares onde viviam e a posição política de suas famílias fizeram com que fossem diversos os modos como encararam o movimento. Nesse sentido, foi possível ver que muitas não conseguiam acompanhar o que estava acontecendo porque, até mesmo para algumas que tinham familiares participando diretamente na campanha, achavam o momento muito difícil. Muitas, por sentirem medo, acabavam se fechando para o que estava acontecendo em Porto Alegre e preocupando-se unicamente com seus familiares. Na década de 1960 a sociedade era machista, a política era vista como coisa de homem, e apesar das mulheres já votarem, dificilmente participavam dela. O único meio de comunicação disponível para a maior parte da população era o rádio, poucas famílias tinham acesso à televisão, o que, pelo que disseram, dificultava o entendimento das pessoas. Elas ouviam na Rádio Guaíba o que o governador Brizola dizia, mas como poucas entendiam de política, acabavam sem entender as causas da Campanha da Legalidade.
Apesar de contrariar os padrões vigentes, muitas já trabalhavam na época e, mesmo tendo uma vida fora de casa, tinham dificuldade para entender o movimento. Norma, professora, disse que era difícil acompanhar o que estava acontecendo. Contou que homens montados em cavalos bateram nos portões de sua escola e mandaram todos os alunos embora. Elas foram obrigadas a fazer “plantões” nas escolas mais próximas de suas casas, e nunca ficaram sabendo o porquê dos plantões. Não havia rádio na sua escola, por isso ficava o dia todo sem saber o que estava acontecendo. Ela tinha um filho pequeno que ficava com sua mãe, e seu maior medo era de estourar uma guerra civil e ela estar longe de casa. Embora seu marido participasse da campanha, o medo que sentia a impediu de procurar entender a Legalidade.
Por outro lado, outras, independentemente de terem seus familiares na campanha, acompanhavam e entendiam o que ouviam. Por mais que o movimento afetasse diretamente suas vidas e elas sentissem medo, era um dever saber exatamente o que estava acontecendo na sociedade em que viviam. Algumas mulheres que eram casadas com militares contaram que se inteiravam da campanha para que, de alguma forma, pudessem saber o que seus maridos estavam fazendo, já que recebiam poucas informações deles. Altiva morava em Santa Maria com seu filho, e como outras mulheres de militares, passava o dia inteiro esperando notícias do seu marido. Ela contou que a Campanha da Legalidade foi um tempo muito difícil, onde não tinham ideia de onde eles estavam. Comentou que ela e as outras mulheres foram avisadas que se começasse uma guerra era para elas pegarem seus filhos e irem abrigar-se na casa de uma das mulheres. Segundo a entrevistada, todas que esperavam em Santa Maria entendiam a Campanha da Legalidade, pois, através de algumas cartas que recebiam ficavam sabendo exatamente o que estava acontecendo. Elas ouviam o que o governador Brizola dizia pelo rádio, e mesmo que sentissem muito medo por seus maridos, não viam isso como um impedimento para acompanhar a política.
Em todas as entrevistas as mulheres falaram do medo que sentiram na época. As que tinham os familiares trabalhando diretamente com a campanha, tanto a favor quanto contra a Legalidade, tinham ainda mais medo por acharem que poderiam perdê-los. Algumas tinham familiares que apoiavam Leonel Brizola, e contaram que mesmo assim tinham raiva dele por causa do medo que sentiam, porque para essas, ele era o culpado por todas as coisas ruins que estavam acontecendo. Norma disse que o governador pediu, pelo rádio, que as mães levassem seus filhos pequenos para frente do Palácio, e ela sentia raiva por isso, achava que ele só pedia “tal absurdo” porque não era “mãe”. As pessoas que viviam perto de Porto Alegre também tinham outro medo: dos tanques e aviões que iam em direção à capital do Rio Grande do Sul. Norma, que morava perto da BR 116, em São Leopoldo, contou que era impossível dormir a noite por causa do barulho dos tanques passando, e como não sabia ao certo o que estava acontecendo, achava que a cidade podia ser bombardeada pelos aviões e muitas pessoas poderiam morrer, inclusive seus filhos.
Se para muitas mulheres que moravam perto de Porto Alegre e tinham seus familiares envolvidos com a campanha, era difícil acompanhar as questões políticas, para as que moravam longe era pior. No interior também houve diversas formas de encarar o movimento entre as mulheres, mas a distância fez com que os pontos de vista e medos fossem diferentes. Algumas contaram que, por morarem longe, era extremamente difícil acompanhar o que acontecia na capital do estado. Elas ouviam o que Leonel Brizola dizia pelo rádio, mas era tudo muito “distante”, fora do seu mundo. A postura da família em relação à política também influenciou muito na forma como elas encararam a Legalidade, por isso, a falta de posicionamento político de algumas famílias fez com que muitas mulheres do interior fossem indiferentes ao movimento. Cleni contou que por ser muito jovem na época, recebia muita influência das pessoas mais velhas de sua família. Na sua cidade não havia televisores, existiam poucos jornais e não chegavam livros. O que se ouvia pelos mais velhos é que o comunismo (pelo que entendiam era algo terrível) poderia tomar o país. Ela disse que levou muito tempo para desligar-se do que aprendeu com sua família e realmente entender as causas da campanha.
Outras mulheres, mesmo não tendo suas vidas diretamente afetadas pela Campanha da Legalidade, mobilizaram-se e procuraram entender o que estava acontecendo no estado. Por tanto, percebemos que a questão da influência da família, como já foi mostrada, acima, também pesou para as que se envolveram com o movimento. Marlene contou que em 1961 era noiva de um homem que gostava e entendia muito de política. Ela entendia que se João Goulart não assumisse a Presidência do Brasil o país estaria sujeito a um golpe militar e isso não seria bom. Ela disse que acompanhava e entendia tudo que Leonel Brizola dizia pelo rádio. Por estar longe de Porto Alegre e da movimentação de tanques e aviões, o seu medo não era o de ter sua cidade destruída ou perder seus familiares, mas sim do rumo que tomaria a política no Brasil.
Algumas mulheres, por não entenderem a Campanha da Legalidade, acharam que ela resultou em nada. Olga contou que na época houve muita tensão e ela procurou entender o que estava acontecendo porque seu namorado era militar e estava em Tramandaí para barrar a entrada de navios que viessem do norte. Ela disse que todos sentiam muito medo de ficar sem mantimentos caso começasse uma guerra, mas que no final toda a movimentação que houve com a campanha acabou dando em nada.
Muitas mulheres mobilizaram-se com a Legalidade. As formas como se envolveram estão ligadas aos diferentes meios sociais em que viviam e caracterizaram as distintas posturas e percepções que tiveram. Muitas, por medo, ou simplesmente por acharem que a política não cabia a elas, acabaram sem nunca procurar saber as questões que levaram à campanha, outras, mesmo sentindo medo, acharam que deviam buscar entender o que estava acontecendo por fazerem parte da sociedade. Mulheres do interior gaúcho também viram a campanha de diferentes formas. Algumas, por estarem longe, acreditavam que o que estava acontecendo na capital do estado independia delas, por isso não se envolveram. Outras, pelo mesmo motivo, conseguiram analisar e entender melhor o que representava a Legalidade, e a partir daí, puderam posicionar-se de acordo com o que acreditavam.









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