Muniz Sodré, um pensador da comunicação no Brasil

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A construção do fato e o fato da  construção

Vou botar um pouco de nível neste blog hoje.

Estive ontem no Rio de Janeiro.

Participei na UFRJ de uma mesa com Alberto Dines, Maria Immacolata Vassalos de Lopes (USP, Erick Felinto (UERJ) e Mohammed ElHajji (UFRJ) em homenagem a Muniz Sodré, que completou 70 anos.



Falei o seguinte:

Muniz Sodré é certamente o mais importante teórico brasileiro da Comunicação. Baiano, mulato, pai-de-santo, faixa preta de karatê, capoierista, marxista, pós-moderno, pensador dos afetos, do sensível e do cotidiano, escritor, jornalista e, acima de tudo, intelectual, ele produz diferença porque pensa diferente e, em lugar de separar, reúne, complexifica, ousa, arrisca e cria.

Erudito, poliglota, navega em várias culturas e conhece minuciosamente a obra daqueles que servem de referência, dos clássicos da filosofia aos contemporâneos mais marcantes e originais, entre os quais Jean Baudrillard e Michel Maffesoli.

Muniz Sodré é um teórico barroco.

A bibliografia de Muniz Sodré é vasta e rica.

Um dos seus últimos livros, talvez um dos menos comentados, merece atenção: “A narração do fato: notas para uma teoria do conhecimento”. A tese sustentada no livro é sedutora, polêmica e deliciosa: jornalismo é literatura. Jornalismo é texto.

Texto é narrativa.

Narrativa é construção. Construção é escolha, recorte, enfoque, cruzamento de subjetividade com técnica, sedução, estilo. Provocador talentoso, Muniz vai além: interpreta a narrativa jornalística a partir do romance policial. Quando um crime acontece, acontece de determinada maneira, não de outra qualquer. O que faz o jornalismo? Busca narrar o crime como ele aconteceu.

O que consegue o jornalismo? Narrar o crime como foi possível reconstruí-lo.

A meta, como a do detetive, não muda: descrever, descobrir, revelar, traz à tona o crime como ele se deu.

Uma citação de Maurice Blanchot, feita por Sodré, tem chamado a atenção dos seus leitores desejosos de participar da controvérsia: “A narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, a aproximação desse acontecimento, o lugar onde este é chamado a se produzir, acontecimento ainda por vir e por cujo poder de atração a narrativa pode esperar, também ela, realizar-se”. Como se dá essa passagem do acontecimento à narrativa do acontecimento? Como alcançar pela narrativa o próprio acontecimento? Normalmente a ideia de narrativa provoca uma suspeita,  ideia, nem sempre explicitada, de que a subjetividade escancarada toma posse do texto e substitui a reconstrução do fato.

Juan Domingues fez doutorado comigo na PUCS. Estimulado por mim, abordou a questão da narrativa em livros de Caco Barcelos e Fernando Morais: jornalismo, história, biografia, ficção, Novo Jornalismo? Morais, por exemplo, promete, como marketing, contar a verdade, apenas a verdade, mas, sem designar o seu gênero, reconstitui, assim como Caco Barcelos, acontecimentos com ajuda de recursos literários. Faz ficção. Se ambos dissessem que fazem romance, seus livros encalhariam. Oferecem um produto, entregam outro. O leitor, talvez sem saber que a sua lógica é considerada ultrapassada, quer a verdade, acredita na verdade, quer saber como o crime, de fato, aconteceu, não se contenta com uma versão do fato.

A narração do fato, porém, mostra Muniz Sodré, é sempre versão. A realidade é inacessível. Há um paradoxo: a ficção, como mentira que é, permite, quando boa, chegar mais profundamente a uma verdade.

O jornalismo, como espaço da não ficção, não consegue chegar à verdade primeira, mas não pode mentir. Com sutileza e densidade, mais um paradoxo da sua arte, Muniz Sodré reflete sobre a condição ambivalente do texto jornalístico: sem ser fotografia da realidade, essa concepção ingênua que ainda encontra adeptos, sendo mais do que representação do real, esse avanço moderado em relação à concepção anterior, jornalismo é construção do real.

O que significa construir? Como conservar a credibilidade nessa construção. Muniz indica: “A credibilidade decorre muito provavelmente do lugar privilegiado que o jornalista ocupa como mediador entre a cena do acontecimento e a sociedade global: o lugar da testemunha”. Esse lugar de testemunha contamina o espaço literário atualmente.

Paulo Coelho tentou convencer que seus primeiros livros traduziam o olhar de um verdadeiro mago, não de um personagem mago. Cristóvão Tezza só alcançou amplo sucesso com um livro-depoimento, “O filho eterno”, relato de sua história como pai de um filho deficiente. Bruna Surfistinha tornou-se celebridade ao contar as suas aventuras e desventuras de garota de programa. Um romance sobre uma garota de programa não teria o mesmo efeito sobre o publico.

Muniz afirma que jornalista é, acima de tudo, “o intérprete qualificado de uma realidade que deve ser contextualizada, reproduzida e compreendida nas suas relações de causalidade e condicionamentos históricos”.

O jornalismo depende de valores-notícia, determinados pelo mercado, que se orienta pelo gosto médio do consumidor. Esse gosto médio, construtor e construído pelo próprio jornalismo, alimenta-se da narrativa de folhetim. Paradoxalmente quer o olhar da vítima, o olhar do perito, o olhar do investigador e, antes de tudo, o olhar da testemunha”. A literatura atual também. Aquilo que se apresenta como valor maior é: eu vi, eu estive lá. Iluminador dos nossos espíritos, Muniz Sodré, em “A narração do fato”, desconstrói a engrenagem do jornalismo, desmonta o truque e deixa questões: como interpretar e reproduzir a realidade sem deformá-la? Só os grandes conseguem semear perguntas e respostas igualmente inquietantes e desestabilizadoras.

Muniz tem sido um farol abrindo clarões na escuridão do nosso pensamento.

*

Fiquem tranquilos, assim que der, volto a falar de pit bull.

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