Na casa de Michel Houellebecq

Na casa de Michel Houellebecq

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Eu tenho curiosidade pela "cozinha" dos grandes escritores: como escrevem? Onde? Em que tipo de computador? Quantas horas por dia. Em que ambiente?

Acho que tudo isso influencia na obra.

Cada louco com as suas manias.





Fomos jantar na casa de meu amigo Michel Houellebecq, o mais maldito e admirado escritor francês da atualidade, o rei da provocação, da polêmica e da ironia. Ele mora no 12º andar de um edifício imenso – uma torre com vista para boa parte da cidade – no bairro mais asiático de Paris. Michel queria nos apresentar a sua nova “petite amie”, Ines, que deve ter, no máximo, 20 anos, tem cara de menina, jeito de menina e estuda Letras na Sorbonne.

Michel estava às voltas com uma entrevista para um jornal da África do Sul. Eram 18 perguntas realmente afiadas.

– O senhor é um criminoso? – era a última questão.

A entrevistadora precisava: “Espero que sim”.

Ines é o que, no Brasil, seria chamada de gatinha. Uma gatinha prendada. Eu nunca vinha comido uma carne de veado tão boa. Veado, não. Cervo.

No mais, ficamos ouvindo Houellebecq, com sua voz cada vez mais baixa, comparar Rússia e Brasil, descrever os defeitos da França e criticar a falta de pegada dos socialistas franceses.

– Não gosto dos socialistas. São moles. Uns frouxos.

Houellebecq já vendeu mais de cinco milhões de exemplares dos seus livros. No momento, só escreve poesia, a sua paixão maior, uma poesia melancólica, quase depressiva. Está traduzido em 41 países. Virou o queridinho do New York Times, que admira a sua irreverência. Ele me mostra a sua pequena biblioteca. Agatha Christie domina uma estante. Fazemos uma sessão musical. Ines quer que mostremos numa tela de televisão gigante os grandes nomes da música brasileira. Ela e Claudia se derretem para a beleza de Chico Buarque. Roberto Carlos parece-lhe simplesmente bizarro. Michel desanda a falar das suas paixões musicais: ama, como eu, Charles Trenet, considerado cafona pelos jovens, inclusive Ines. Confessa não ter o mesmo entusiasmo pelo quase mitológico Serge Gainsbourg, o Chico Buarque francês.

Faz questão de mostrar um cantor muito atual:

– Da Silva!

– Um francês?

– Sim, um francês.

Da Silva tem um ar latino, aquele jeito de cusco pedindo carinho. As moças suspiram. Passamos logo para Iggy Pop cantando letras de Houellebecq. Por fim, acabamos vendo clips do próprio Houellebecq recitando os seus poemas tristes, incrivelmente tristes e belos.

– É preciso ser simples, muito simples – diz ele.

– Simples?

– Não entendo porque os artistas não querem ser simples.

– Ou não conseguem? – pergunto.

– A verdade está na simplicidade. Por isso Trenet é bom. E é isso que faz Gainsbourg ser menos bom do que ele.

Antes de irmos embora, já embalado pelos bons vinhos tintos e pelas divagações estéticas quase tão boas, ainda pergunto o que ele responderá aos sul-africanos.

– Vou dizer que eu me esforço.

A casa de Houellebecq é como ele: simples e enigmática.

A janta estava ótima.

A cozinha do escritor tem muitos segredos e surpresas.

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