Na cor da pele

Na cor da pele

Fragmento de abertura do romance Acordei negro

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Acordei negro.

Quando me olhei no espelho, vi meus lábios grossos, meu crânio reluzente e minha pele escura. Fiquei, por alguns segundos, perplexo. Esfreguei os olhos com as costas das duas mãos até me sentir meio tonto. Diante de mim estava um homem diferente. Um estranho. Era eu. Consegui me arrastar para o banheiro. Tudo me parecia distante e frio. Examinei os objetos em torno. Eram todos meus. Sim, todos meus. Eu poderia identificá-los pelo tato. Reconheci o barbeador, o pente estilo casco de tartaruga e uma gravura triste com traços de dois cavalos empinados na parede acima do vaso sanitário.

– Quem é esse aí? – cheguei a me perguntar.

     Tentei me barbear. Não fui muito longe. Fiquei nu. Fazia frio. Fui para a ducha. Fechei os olhos e deixei a água quente me envolver até formar uma bruma. Por alguns instantes, creio que eliminei qualquer pensamento. Entrei numa eternidade temporária. Só não podia ficar no banho para sempre. Depois de me secar em câmera lenta, voltei a me fixar no rosto sério que via no espelho de sempre. Notei uma leve semelhança com as feições de um negro de um quadro, que me agradava, de Portinari. Sem os seus cabelos espessos e o olhar altivo. Havia um pequeno corte entre o nariz e o lábio superior do homem que me fitava com meus olhos castanhos perdidos. Uma gota de sangue parecia querer ganhar corpo. Alisei meu rosto. Ali estava o ferimento feito pouco antes.

– Não pode ser – exclamo.

     Colei um pedaço de papel higiênico no corte para impedir o sangue de escorrer. Imediatamente o papel branco apareceu do outro lado. Uma prova no espelho, uma prova de sangue. Contemplei a gota vermelha como se fosse uma pérola ou um pingo de ouro na superfície de um cristal levemente crispado. Um ponto rubro sobre minha pele subitamente negra. Apoiei-me no mármore da pia e fitei a gota que parecia querer forçar a superfície enrugada do papel higiênico. Meu corpo amoleceu. As minhas pernas fraquejaram, mas não o suficiente para eu cair. A contemplação da gota de sangue, tão pequena, viva e sem consequências, não deixava de me abalar. Ou era o contraste entre o vermelho e o negro na lâmina?

     Examinei, quando me recompus, se é que me recompus, minuciosamente a minha pele enegrecida. Alisei o meu queixo como quem procura uma imperfeição numa tela de cristal líquido. Passei, em busca de nitidez e de clarividência, a toalha azul no espelho embaçado pelo vapor do interminável banho quente. A toalha caiu no chão como uma pluma triste sob meu olhar mortiço. Ao me dobrar para recolhê-la, vi meu corpo, minhas pernas, meu sexo. Nada mal para um homem de 51 anos. Um belo negro. 

Depois de me vestir de modo estranho – uma calça jeans rasgada e um moletom verde com uma indecifrável bola azul no peito –, como se tentasse enfiar, dentro de uma nave espacial, uma roupa apertada, desci para ir à farmácia. Não encontrei qualquer vizinho no elevador. O edifício exalava uma espécie de letargia. Não havia porteiro. Deslizei para a rua como se estivesse em pé, num avião, durante uma leve, mas persistente, turbulência. Andei alguns passos e me apoiei num carro, uma Cherokee preta com vidros escuros, para me recompor.

− Vaza, vai. Vaza – ouço alguém dizer.

– Como?

– Cai fora.

     Sinto as nuvens muito próximas de mim. O céu está chapado como uma placa de trânsito desbotada. Deve ser feriado ou domingo. Não me lembro. A voz soa metálica:

− Vaza.

– Está me confundindo...

– Cai fora.

     Na solidão da minha inquietude, aguçada pela estranheza, eu me pergunto o que está acontecendo. Não quero acreditar que alguém se dirige a mim em tom tão impositivo. O dono da voz, enfim, sai de trás dos carros e se posta na minha frente como se eu não contasse.

− Vaza.

     É um policial fardado. Tem o nariz aquilino e uma rachadura no lábio inferior. Exibe uma barba suja de dois dias. Percebo que ele me olha de uma maneira especial, diferente, algo que nunca experimentei. É um olhar enviesado, ambíguo, frio, cortante, zombeteiro. Um dos botões marrons da sua camisa está quase solto.

− Quer contribuir com as estatísticas? – ele pergunta.

− Como?

− Esta é a rua da cidade com o maior número disparado de roubos de carro. Vai dizer que não sabia disso?

− Não estou me sentindo bem – resmungo.

− Sei − é a vez de ele resmungar.

– Estou mal.

– Vaza.

Vaza.

     Eu me afasto quase tateando. Uma luz glauca perfura a camada compacta de nuvens em forma de objetos esquisitos e desce sobre mim como uma ducha. Preciso dobrar a esquina para alcançar a farmácia. De repente, tudo parece mais amplo, distante e cinza. Agora eu caminho sobre uma nuvem. Meus pés se afundam na calçada e ressurgem secos como folhas enrugadas pelo sol. Entro na farmácia com a sensação de não ser eu mesmo.

*

(Fragmento de abertura do meu novo romance, “Acordei negro” (Sulina/Figura de Linguagem), que já está nas livrarias e terá sessão de autógrafos, dia 2 de novembro, na Feira do Livro de Porto Alegre).

    

 


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