Na crise dos quase 60

Na crise dos quase 60

O que ficou para trás? O que temos pela frente?

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Estou sentindo os sinais da crise dos 60. Na crise dos 40, quis mudar de time de futebol. Na dos 50, tentei comprar um gato. Escrevi isto: tentei comprar um gato para a Cláudia. Seria presente de aniversário. Ela não quis. Argumentou que gato estraga os estofados e as plantas. Insisti. Ela encontrou uma saída perfeita: garantiu que o único gato da casa sou eu. Diante de um argumento dessa ordem, fiquei por algum tempo sem palavras. Depois do deslumbramento, busquei uma alternativa honrosa ou ardilosa: uma onça. A resposta da Cláudia foi categórica: nem pensar. Por que ando com essa mania de gato? É a idade. Depois dos 40, muito homem pensa em gatas. Passados os 50, a gente começa a querer voltar às origens. É a hora do gato. Tive todo tipo de bicho, de gato, passando por cachorro, a corvo e tatu. Dentro de casa, porém, acho gato mais conveniente do que cachorro.

      Estava na fase de rever conceitos. Sem radicalismos. Anotei:  é aquela hora em que redescobrimos os prazeres da vida simples. Tenho sonhado com um retorno à natureza. Como sou movido por uma lógica afetiva, pensei em comprar uma chácara em Palomas. É longe para ir com frequência. A solução seria um sítio na grande Porto Alegre. Achamos perigoso. Além disso, tem uma questão conceitual: sítio é chácara? O grande filósofo Jean-François Lyotard, um dos pais da pós-modernidade, cita Wittgenstein, que cita, adaptando-o, o famoso paradoxo grego do monte (quando uma pilha de grãos de areia deixa de ser um monte?): com quantas casas e ruas um lugar passa a ser uma cidade? Estou nessa situação: como transformar um sítio na região metropolitana numa chácara com a carga afetiva de Palomas? Como voltar ao ponto de partida sem partir? (era assim que eu pensava aos 51 anos de idade).

      E agora? Posso repetir o que publiquei: a verdade é que estou precisando de um lugar com gato, cavalo e cachorro. O gato se chamaria Lyotard, o cavalo, Wittgenstein, e o cachorro, Neymar. Por quê? Não sei. Não se trata de julgamento moral ou de avaliação da qualidade intelectual de ninguém. Gosto desses nomes para esses bichos. Preciso de um lugar que tenha galpão, mangueira, sanga e, na época, melancia para colher e comer até se mijar de rir. Ando com vontade de dar longos passeios a cavalo. Na falta disso, já andei de bicicleta na Redenção. Acredito piamente que se pode sair da aldeia, mas a aldeia não sai da gente. A compra ou a adoção de um gato seria o meu primeiro passo de retorno a Palomas. Levaria, claro, uma biblioteca. Leria novamente Borges à sombra dos cinamomos e ouviria Beethoven e José Mendes. Essa é a minha utopia. Essa é a minha verdadeira ideologia.

      Confirmo o que contei: sempre gostei de animais. Mas não gosto de animais como algumas pessoas passaram a gostar. Não entrarei nessa discussão. Estou afinando meus argumentos para convencer a Cláudia a ter dois gatos: eu e o outro. O outro será escolhido por mim ou por ela, com a minha aprovação, e terá necessariamente quatro patas. A questão de gato é simplesmente o reflexo de um momento existencial. Tenho me ocupado com algumas perguntas que já passaram por certas mentes ao longo dos últimos 2500 anos: quem somos? Para onde vamos? Por que viemos? O que ainda podemos esperar? O que devemos fazer? O que podemos conhecer? Existe sentido? Messi será melhor do que Pelé?

      Essa última pergunta já encontrou a sua resposta: não. Na crise dos 40, escrevi um livro: “Para homens na crise dos 40 e para mulheres interessadas em compreendê-los” (Sulina). Na crise dos 50, escrevi um poema: “Tenho 50 anos de estrada e a sina já bem talhada/Tenho uma mala de lembranças, atalhos, lambanças,/Um seguro de vida, fundo de garantia, uma cirurgia”. O que farei agora que a crise dos 60 se aproxima? Comprarei um sítio (não uma chácara) em Palomas? Escreverei outro livro, desta vez endereçado a cuidadoras? O poema eu já fiz:

Patrimônio

 

Em Palomas fui dono de um lote de nuvens,

Em Paris, das cores das cerejeiras em flor.

Nessas épocas, não sentia dor nas costas

Nem me angustiava com a palidez do arco-íris.

 

Quando jovem, investi em castelos

Não me perguntava de que areia eram feitos.

Velho, converso com as damas das cartas

Sentindo que já estou fora do baralho.

 

Nas manhãs de setembro eu colhia raios de sol

Enquanto o céu resplandecia de infinito

Azul turquesa era o reflexo da solidão no tempo.

 

Ainda sinto as nuvens se desfazendo num tropel

Meu patrimônio cabe todo num canto da mão,

Justo agora que de concreto só há o vento.


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