Navegação de cabotagem (hino à interdependência)

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Contemplo o meu corpo

Como quem vê um porto.

Meus braços são mastros

Que acenam para os astros.

 

Mas os astros, no espaço,

São como mastros, escasso

Porto onde se contemplam

Corpos que quase despencam.

 

Contemplo o meu corpo

Como quem vê velhos navios.

Minhas rugas são como ondas

Minhas pernas, frágeis pavios.

 

Mechas mirradas como imagens

Das corridas feito miragens

Que realizei quando jovem.

Rastros que não se removem.

 

Retratos em preto e branco,

Sinuosos como anacondas,

Instantâneos da minha alma,

Fotografias em tons bravios.

 

Aliso esta minha pele flácida

Como quem revê a sua cidade,

Uma longa rua vazia e plácida

Salpicada de manchas da idade.

 

Memórias sem pátria da semana

De cujos desfiles ainda emana

A preguiça do feriado nacional

Como uma paródia de carnaval.

 

Contemplo o meu velho corpo

Como um avariado barco torto.

Nos meus olhos opacos uma vela

Oscila como uma rota bandeira.

 

Essa vela já não é chama,

Essa bandeira é que me vela.

Como uma enferrujada baleeira,

Essa embarcação é minha cama.

 

Este corpo que triunfava ao vento,

Agora, fatigado e muito lento,

Contempla atracado ao relento

Viagens, tempestades, pensamento.

 

Meu coração antes soprado pelo tufão,

Açoitado pelo sal ambíguo da paixão,

Cochila agora numa agridoce amargura,

Cada sobressalto molha minha secura.

 

Minhas veias agora quase entupidas,

Minhas artérias quase interrompidas,

São canais por onde passou a emoção,

Singrando os bares alheia à ilusão.

 

Contemplo o meu maltratado e combalido corpo

Sem pensar que de certo modo já estou morto.

Minha mente lembra ensolarada do que esqueceu,

Encontros, aventuras, tardes tristes, algo teu.

 

Nesta minha carcaça de vidas passadas,

Cemitério marinho de almas penadas,

Marinheiros frequentam o mesmo bordel,

Onde eternizam seus amores de aluguel.

 

Avanço dentro da longa noite

Estimulado pelo agudo açoite

Das manhãs de rei no convés

Tendo só o naufrágio como revés.

 

Na minha louca e sinuosa caminhada

Fiz o melhor do amor na calçada,

Beijei muitas bocas desconhecidas

Jurei fidelidades não merecidas.

 

Se não fiz todo o bem que devia,

Também não fiz o mal que podia.

Andei, certo, um tanto a esmo

Para não viver sempre o mesmo.

 

Este corpo que arfava em mar aberto

Contempla agora o bruxulear da vela,

Vendo imagens do passado na sua tela,

Onde desponta o futuro muito perto.

 

Essa vela que melancólica ainda arde

Ludibriando o galope do escuro

Como se fosse eu saltando o muro

É só um intervalo da Sessão da Tarde.

 

 

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