Neste domingo, vou ao Brique

Neste domingo, vou ao Brique

publicidade

Um filme brasileiro

 

      Estávamos em cima da hora. Cláudia temia que não tivesse mais ingressos para o filme. Eu ria suavemente. Claro que teria. Depois da terceira observação quanto ao tempo e aos ingressos, fui mais claro:

– É um filme brasileiro.

Chegamos com dois minutos de atraso. A sala estava pela metade. Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, com Sônia Braga, é um dos melhores filmes brasileiros dos últimos tempos. Ficou marcado em Cannes, na França, pelo “fora, Temer” do elenco e de toda a equipe. Depois disso, em retaliação, tentou-se classificar o filme como impróprio para menores de 18 anos. Já caiu para 16. De certo modo, é uma obra imprópria para “inocentes”: mostra as ações obscenas de uma construtora, em nome dos ideais da especulação imobiliária, para desalojar a dona de um belo apartamento, derrubar o seu edifício, na praia da Boa Viagem, em Recife, e construir um novo arranha-céu, inicialmente, claro, com nome em inglês incompreensível e fashion.

Sônia Braga, no papel de uma jornalista aposentada e escritora de certo prestígio e pouca vendagem, que vive em torno dos seus vinis e das lembranças dos anos incandescentes da juventude na década de 1980, está soberba (é o termo que se usa para elogiar interpretações do atrizes, mas poderia ser também magnífica). Aquarius satiriza o que Dominique Wolton chama de ideologia tecnicista, o deslumbramento com as novas tecnologias e com o digital. A personagem de Sônia Braga é sabatinada por uma jovem jornalista que só pensa no mundo novo da tecnologia. A chamada da entrevista no jornal, um elogio ao MP3, contraria o gosto e as palavras da entrevistada. Um case clássico.

Aquarius é tão bom que dificilmente terá chances no Oscar. Faz a crítica dos valores do mercado. O vilão estudou business nos Estados Unidos. O filme defende um direito ao descompasso no mundo. Ridiculariza a ideia de que o novo é sempre melhor do que o “velho”. Valoriza o imaginário afetivo em detrimento do securitário. Canta a revolução sexual que libertou mulheres do poder masculino. Coloca os sons de ontem, como a música da maravilhosa Maria Bethânia, acima do tempo e das facilidades do presente. Não se constrange. Não se intimida. Não cede diante dos apelos publicitários da novidade.

Até me fez pensar, entre tantas coisas raras e tão poucas soluções, na resposta que elaborei duramente para quando tentam me emparedar com a petulância do novo contra o supostamente anacrônico.

– Deixa de ser velho! – é o que me dizem

– Deixa de ser infantil! – respondo.

A verdade de Aquarius é cristalina como um dia foram as águas da Boa Viagem: a lógica dos negócios costuma ignorar a ética. A divisão entre Pina e Brasília Teimosa se faz por um cano de esgoto. Mas um jovem lobo com sangue nos olhos não aceita ter seus instintos tolhidos por histórias de vida e sentimentos que pode rotular, com sua costumeira autossuficiência, de ultrapassados. Uma frase célebre retorna. Em Pernambuco, quem não é Cavalcanti, é cavalgado. No Brasil, quem não se dobra, é atrasado. Aquarius é tão bom, tão maravilhosamente na contramão, que será pouco visto. Não é Batman.

*

Eu sempre sonhei em ser dono de canal. Por muito tempo, canal para mim foi dentário. Sofri nos tratamentos. Resolvi dar um salto na vida. Criei meu canal no youtube: Imaginário – Informe de Brodie – Essas palavras, essas imagens, crônicas do surrealismo cotidiano. Rupert Murdoch que se cuide. Estou a área. Pretendo ter cem inscritos na primeira década. Estou em campanha por toda parte. Quero ter, no twitter, cem mil seguidores. Tenho 25 mil. Se cada um dos meus seguidores trouxer mais três, chegarei lá. Sou homem de metas. Dou recompensas: quem me trouxer cem seguidores, ganhará três livros meus. Bem, talvez isso desestimule as pessoas. Não precisa pegar.

Domingo passado, eu tinha a minha sessão de autógrafos no Brique da Redenção. Choveu. Não rolou. Esqueci de combinar com São Pedro. Será que ele tem algo contra mim e contra o “fora, Temer”? Ficou para este domingo, no mesmo local, a banca do Zé, quase na João Pessoa, a partir das 11 horas. Quem levar uma foto do meu outdoor, aquele da saída do túnel da rodoviária, em Porto Alegre, compra um livro e ganha outro. Promessa é dívida. O pobrezinho acabou visto. Uma moça, enfim, com olhos brilhando de generosidade, me perguntou:

– O senhor não é autor?

– De quê?

– Autor de livros. O senhor é muito parecido com um outdoor.

Foi assim. Não a abracei para evitar constrangimentos. Sou discreto. Autor de livros, dono de canal, youtuber, blogueiro, colunista, homem de redes sociais (twitter e facebook), sou um ser do meu tempo, tecnologicamente liberado, pós-tudo, ex-tudo, leitor de Augusto de Campos e de Borges, amigo de Michel Houellebecq, feliz por ter sido arrolado numa lista de “três idiotas formadores de opinião contrário ao impeachment”: Chico Buarque, Caetano Veloso e eu. Meu edifício não se chama Aquarius, mas é uma construção intemporal.

Corruptos_1capajangoImagCavalo

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895