Neymar, eu e a vida

Neymar, eu e a vida

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O caso Neymar

 

      Rico e famoso, Neymar tem muito a aprender: precisa saber que fãs não toleram mudanças de rumo. O jogador cometeu um crime de lesa-fã: trocou o sagrado Barcelona de Messi por uma aposta no PSG. Nada pode irritar mais o mundo do espetáculo que esse tipo de deslocamento. A França é vista como um submundo do futebol. Como alguém poderia se atrever a sair do firmamento em busca de novas emoções? Neymar já sabe que o dinheiro é capaz de construir mitos. Foi atrás do seu. Em 100 dias, fez 11 gols em 12 jogos, massacrou o poderoso Bayern de Munique por 3 a 0, lidera o campeonato francês, que já não é tão diferente assim do Espanhol, onde dois reinam, um belisca e os outros arriscam, e joga como nunca. Apesar disso tudo a crise se instalou. Por quê?

Porque Neymar deixou o Barcelona. É como se um brasileiro abandonasse os Beatles ou os Rolling Stones. Todas as previsões são negativas. Não vai dar certo. O trio MSN (Messi, Suarez e Neymar) era um sonho. O PSG nunca será um Real Madrid, um Barcelona, um Bayern. As previsões pipocam: ele vai voltar à Espanha arrependido. Irá para o Real. As notícias falsas infestam os jornais: ele já se arrependeu, não suporta o treinador, mal fala com o colega Cavani. Foi um erro. Os resultados desmentem tudo. Sim, houve desentendimento com Cavani por causa das cobranças de pênaltis. Foi resolvido. Depois de um amistoso do Brasil, Neymar desabafou e chorou no ombro do técnico Tite. Garantiu que está feliz em Paris, motivado e sem inimigos. Resolveu?

Não. Até piorou. Um jornalista escreveu que as lágrimas de Neymar escondem algo mais profundo. O quê? A infelicidade do jogador em Paris. Ele estaria se sentindo solitário, saudoso da Espanha, isolado numa cidade fria e pouco amistosa. Nada mais perverso. A tentativa de estancar a crise é usada para aprofundá-la. A refutação vira mais um argumento contra o atleta. A tese precisa vencer os fatos. Depois do trio MSN do clube catalão, instalou-se um novo trio em Paris: MCN (Mbappé, Cavani e Neymar). Nada convence os profetas. A escolha de Neymar tem de falhar. Por que falar disso? Pelo que essa história esconde ou revela sobre os imaginários contemporâneos. A jornada do herói não permite todas as liberdades de roteiro. Se Neymar tivesse ido para o Manchester City, do mito Guardiola, seria louvado.

Ir para o PSG desconstrói a mitologia. Sugere que tudo é possível se houver dinheiro para reunir os melhores ou muitos deles. Desloca do treinador para os jogadores e para a grana a força de erguer coisas belas. Poderá dar tudo errado. Basta que o PSG não ganhe a Liga dos Campeões. Futebol vive de detalhes, triunfos e tragédias. Mas poderá dar certo. Se der errado, já se tem o texto da última cena: Neymar errou por inexperiência, pressa, arrogância, individualismo e por estar mal aconselhado. O pai dele será linchado pela mídia. A novela ainda tem muitos capítulos pela frente. Pobre menino rico. Quer ser o melhor do mundo. Poderá ser o mais criticado do planeta por ter ousado enfrentar a lei do fã midiático. Aguardemos o grande final.
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Hoje, de manhã e de tarde, falarei no auditório do Colégio Marista Santana, em Uruguaiana, em evento do Movimento Negro da cidade.

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Jogo da vida

 

      Tem dias que eu acordo com vontade de mandar o mundo para aquele lugar. Já aconteceu contigo, caro leitor? Claro que sim. A gente pensa, pensa e conclui: quanta sacanagem! A vontade cresce de chutar o balde, de fechar os olhos e mandar ver, de colocar os pingos nos is, de soltar os cachorros, de não deixar pedra sobre pedra, de enquadrar malas, baús, frasqueiras e mochilas. Aí começo a negociar comigo mesmo. Eu me chamo à razão, eu me dou conselhos, eu me advirto:

– De frente, nunca. Transversal. É a lei dos fracos.

Só os fortes podem bater de frente. O drible é a arma do fraco, que para sobreviver precisa andar em ziguezague, contornando obstáculos, jogando duplo, escondendo o jogo, mudando subitamente de direção, conversando, cedendo um pouco para não entregar tudo, entregando muito para ficar com alguma coisa, perdendo por alguma pequena vitória, fazendo acordos, gingando, passando a bola, rindo de si mesmo. A grande ilusão do fraco é achar que se tornou forte. Quando eu acordo com vontade de enfiar o pé na jaca, releio um artigo de Albert Camus, de 1939, sobre o papel do jornalista em tempos difíceis. Eu transfiro os conselhos do grande escritor para todo mundo: é preciso ser lúcido, saber dizer não, ser perseverante e usar a ironia.

Quando desperto com a macaca, eu me recomendo: lucidez, cara, lucidez, cabeça fria. Vou além: digo não a mim mesmo. Tento perseverar no bom senso. Se a coisa aperta, recorro à ironia. É a melhor defesa. Só saio de casa nesses dias depois de bem treinado, doutrinado e convencido. Eu me faço uma lavagem cerebral. Aí entro nas arenas da vida e deixo a coisa a vir. Se não deixar, ela vem da mesma forma. Vaza a primeira onda, mantenho a lucidez. Chego a me dizer baixinho:

– Camus, Camus neles, Camus...

Vem a segunda onda, digo não com desenvoltura. Sinto uma alegria se levantar. Vibro com o meu autocontrole. Aplaudo minha diplomacia. Quase me dou prêmios pela atuação. Deixo Camus de lado. Sou o rei do palco. Não preciso mais de muletas. Aprendi a jogar. A vida segue. Sobe a terceira onda. As ondas nunca param. Persevero. Já me sinto o mais resistente dos homens, uma fortaleza, blindado contra tudo e todos, apto a vencer qualquer desafio na selva do darwinismo social.

Nesses momentos de glória eu me lembro dos tempos ruins, faço balanços, admito meus erros, prevejo grandes acertos, solto as amarras, desisto das estratégias mais defensivas, resolvo atacar com todas as minhas forças, ir para o ajuste de contas, colher o que foi plantado, mostrar os dentes, colocar as cartas na mesa, exibir as armas, enfrentar de peito aberto o que vier pela frente sem medo.

Embriagado de autossatisfação, relaxo, gozo, comemoro. Vem à quarta onda, balanço o adversário, saio na ironia, danço, requebro, passo o pé por cima da bola, mostro o meu talento, ninguém me pega, corro, paro, corro de novo, voo, dou bicicleta. Vem a quinta onda, me quebro. Chuto o balde. Volto para casa pê da vida. Perdi o jogo. Volto a ler Camus humildemente. Ainda aprenderei. Sou perseverante. Não?

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Hoje, 16h30, na sala Oeste do Santander, estarei com Alcy Cheuiche no lançamento do livro da sua oficina “A arte nos caminhos do sul”.

 

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