No leito de morte de Lampião

No leito de morte de Lampião

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Quem é o mito?

 

      Viemos a Piranhas, em Alagoas, para ver esta bela cidade histórica às margens do Velho Chico, passear no sertão e principalmente para conhecer o lugar onde Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram mortos pelas tropas volantes em 1938. Fizemos a trilha de um quilômetro e meio a pé pela caatinga até a grota de Angico cumprindo o ritual agora turístico. Os mortos foram decapitados e suas cabeças expostas onde hoje é a prefeitura de Piranhas. Tudo isso é história. Vamos ao que chama a atenção. No local do ocorrido, duas placas lembram os mortos: uma homenageia Lampião e os seus. A outra, colocada em 2012, rende homenagem a um soldado que ali perdeu a vida. Detalhe: ele foi executado por um tenente. Vítima de fogo amigo.

Alguém atravessa o Brasil para ver o lugar onde a volante venceu a bandidagem da época? Alguém faz a trilha para ver o local onde o soldado morreu? Alguém vem a Piranhas só para ver o Solar dos Rodrigues, de onde Chiquinho Rodrigues teria resistido sozinho a uma tentativa de invasão da cidade pelos cangaceiros de Virgulino Ferreira da Silva? Alguém reverencia os coronéis que se empenharam na eliminação no bando de Lampião por meio dos seus políticos de plantão? Quem é visto como mito nessa história? A resposta é tão óbvia quanto a quentura do sol inclemente nesse pedaço de caatinga tão perto e tão longe do Velho Chico. O mito continua sendo o indomável Lampião.

Quem matava mais naqueles tempos: Lampião e seu bando ou a política dos coronéis, que mantinha na miséria a população desses desertos brasileiros do semiárido nordestino? Quem desonrava mais? O cangaço cometeu horrores. Barbárie contra barbárie? Vingança com seu próprio código de honra contra as atrocidades oficiais? Muito já se escreveu sobre o cangaço como “banditismo social” e muito já se comparou Lampião a personagens como Pancho Villa e outros. A dita letra fria da lei não esquentava a cabeça dos donos do mundo – o sertão é um mundo à parte – com a fome e a desesperança de um sem número de infelizes condenados a arder sob o sol da própria desolação.

Não é impossível ouvir o ribombar de tambores: Lampião pode ser mito, mas não herói, não se pode idealizar bandido, essa é a história que não podemos mais contar, temos de enxovalhar Lampião e outros da sua laia, como Zumbi dos Palmares e todos esses ditos heróis populares, etc. Quem vai abraçar? Quem vai sair da casa para suar na caatinga em honra dos mandachuvas da época? Só comunista caviar vai ao leito de morte do famigerado Lampião? Talvez a questão seja outra: há um sintoma latejando diante de nós? A desigualdade daqueles tempos era acintosa. O fosso produz seus abismos, que devoram a terra firme.

No Museu do Cangaço, em Piranhas, pode-se ver a fotografia das cabeças dos cangaceiros arrancadas para exibição exemplar. O que o passado pode dizer ao presente? Talvez possa falar por meio de ditados: quem semeia vento colhe tempestades. Talvez possa fazer teses sobre a emergência da anomia em situações de desigualdade profunda. Eu queria estar na cabeça de cada uma das pessoas que fizeram a caminhada conosco. Eram pessoas gentis, gente de classe média como nós, todos sabendo que o trajeto era pequeno, mas interminável para quem não pratica regularmente exercícios físicos. Certamente isso explica o silêncio da volta, sem contar que eram todos desconhecidos. Mas algo me diz que havia também reflexão, questionamentos, perplexidade.

Maria Bonita tinha só 27 anos quando morreu. Já ferida, a um companheiro que batia em retirada sob o fogo inimigo, teria lembrado do seu pacto de morte com Lampião. O homem teria voltado para cumprir sua palavra. Idealizações? Edulcorações? Possivelmente. Os cangaceiros não eram santos? Não. Quem era santo naquele inferno? Não o inferno do campo de batalha, o inferno que sempre queimava os sertões do Nordeste não só com a seca e a violência do clima, mas com a ordem simbólica e material dos donos de engenhos, dos donos de gente, dos donos da vida de quem não tinha eira nem beira, esses senhores da guerra permanente.

Um espírito brando diz “alto lá”: nem Lampião nem Coronéis. Eis a opção ideal. Ela era possível? Provável? O tempo passou, a caatinga continua a arder e a vicejar, a vida segue no seu ímpeto inacreditável e irresistível. Aprendemos com esse passado sangrento e hediondo? Superamos o abismo da desigualdade? Apagamos os focos propensos ao incêndio do desespero ou simplesmente da falta de perspectiva ou da descrença na engrenagem com suas normas, forças e códigos? As pessoas vão ao Museu do Cangaço por distração? Para conhecer os horrores dos cangaceiros? Ou para saber sobre uma forma cruel e deplorável de resistência a um sistema que conseguia ser tão ou mais cruel e deplorável? Como foi possível que se tivesse chegado a tal extremo?

Há situações em que o avesso do cenário revela coisas tão abomináveis escondidas diante dos nossos olhos. Uma voz vinda como que do nada grita sem ser ouvida: “Façam alguma coisa, ainda é tempo”.

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