No tempo do país dividido
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Damião queria votar. Ele saiu de casa na manhã de 13 de outubro de 1840, no Rio de Janeiro, disposto a realizar o seu sonho. Tinha 23 anos de idade. Era alto, forte e um tanto estranho. O clima era de tensão. Dizia-se que a divisão atingira um grau nunca antes existente. D. Pedro II fora entronizado. Um rei menino. Os poderosos batiam cabeça. O ministério era liberal; o parlamento, conservador. Damião acompanhava tudo isso. Gostava de política, o que o tornava esquisito.
O pleito fora marcado para que o Partido Liberal vencesse. Medidas foram tomadas para alcançar o bom resultado. Para evitar desencontros e dissonâncias, o governo indicou novos presidentes de províncias, novos chefes de polícia, novos juízes de direito e novos oficiais de comando para a Guarda Nacional. Novos eleitores também. Esse novo tipo de manobra possuía o incrível poder de fazer com que os objetivos fossem atingidos. O voto não era para qualquer um. Mesmo assim, surpresas nunca avisam que acontecerão. É da natureza delas.
Cabos eleitorais encarregaram-se de comparecer aos locais de votação para dar um empurrãozinho nos indecisos ou nos recalcitrantes. Havia quem não entendesse as recomendações ponderadas emitidas. O jeito era ser mais contundente. O método era simples e eficaz: “Para os amigos pão, para os inimigos pau”. Esse pleito seria batizado de “eleição do cacete”. Cada voto foi obtido com o máximo de empenho. Poucas vezes, embora não houvesse novidade, eleitores apanharam tanto.
Quem pode, escapou. Damião foi ao encontro do perigo. Entrou no local de votação. Enfrentou olhares pesados. Manteve-se impassível:
– O que quer aqui?
– Votar.
– Não se enxerga?
Ele teria sorrido. Sabe-se que sorrisos não costumam ser registrados pela história. Mas, vá lá, teria sorrido. E insistido:
– Quero votar.
– Enlouqueceu?
– Sou homem.
Houve perplexidade. Cacetes surgiram. Risadas ecoaram. O que estava acontecendo? A situação era deveras inusitada. Damião repetiu:
– Sou homem.
– Tem certeza?
– Não vê?
– Não.
– Sou homem.
– Até pode ser. Mas não é cidadão.
– Como posso ser homem e não ser cidadão?
– Nem homem nem cidadão. É só um negro escravo – gritou um.
Os liberais venceram. Não ficaram no poder por muito tempo. Em 1841, houve dissolução do parlamento. Os conservadores ganhariam. Vez ou outra, um escravo ou ex-escravo, preso na vertigem da ideologia do senhor, louvava o seu dono, que gritava aos quatro ventos que os interesses de escravos e escravistas eram os mesmos, sendo uma ideologia deletéria, fantasiosa e injusta dividir o império em nós e eles. Visão técnica era o nome que os escravistas davam a ideologia que praticavam. Era assim. Naquele tempo. Depois, tudo se transformou.