No tempo do presencial

No tempo do presencial

Uma história de resistência

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      Era no tempo do presencial. Alguns meses antes da grande mutação. As pessoas beijavam-se, abraçavam-se e tocavam-se sem qualquer restrição. Até europeus e japoneses agiam mais ou menos assim. Parisienses davam-se quatro beijinhos no rosto na chegada ou na saída, inclusive meninos com meninos. Todas as aulas aconteciam em salas repletas de alunos efusivos e despreocupados. Ao menor raio de sol as praias ficavam cheias. A vida, com todos os seus problemas, era deliciosa e muitos não se davam conta disso. Respirar por aparelhos era uma expressão usada para casos extremos e como metáfora em situações de pouca poesia e muita pressa em explicar por imagens.

Então veio a pandemia e com ela a necessidade de isolamento social e de máscaras. Muita coisa se tornou remota. Ao menor raio de sol, porém, as praias continuavam cheias. Foi aí que um sábio resolveu estudar o comportamento dessas pessoas. Disseram-lhe que era mais adequado ir direto ao cérebro de cada um.
      O sábio, no entanto, acreditava nas virtudes do diálogo. Punha uma máscara N95 e abordava pessoas que saíam das areias quentes.

– Por que está fazendo isso? – perguntava.

– Isso o quê? – responder com pergunta era forma de ganhar tempo.

– Entrando em aglomeração.

– E o senhor, me diga, por que está usando essa máscara?

      Havia quem respondesse assim. Pode parecer improvável, grosseiro e estranho ouvir tal resposta de um ser racional. O inverossímil acontece. Um contador de histórias não pode negar a realidade. O sábio deparou-se com um caso especial. Um homem que pregava o contrário de tudo que a Organização Mundial da Saúde recomendava. Era algo assim:

– Façam lockdown – indicava a autoridade sanitária.

– Abram tudo – retrucava o divergente.

– Fiquem em casa.

– Vão para a rua que é menos perigoso.

– A imunidade é de curta duração.

– A imunidade dura muito tempo.

      O sábio concluiu que era ignorante. Enfiou a viola no saco e foi ver jogos de futebol na televisão. Não conseguia entender por que tantos países adotavam medidas restritivas profundas se seria evidente que não funcionavam. Construía hipóteses por falta do que fazer: estariam todos cegos pelo medo? A pandemia afetaria a capacidade de raciocínio dos cientistas? O mundo teria caído numa armadilha de autoproteção suicida? Emitiu uma singela nota antes de se retirar: em situação de imunidade de tempo reduzido as vacinas só terão eficácia se todos forem imunizados na mesma época, produzindo proteção massiva ao mesmo tempo e tirando espaço do vírus para novas infecções, levando-o ao desparecimento mesmo no breve período da imunidade obtida. Fora disso, permitiu-se o coloquial, seria enxugar gelo.

      Esta história começou mal contada. Admitamos o erro e corrijamos. Não era no tempo do presencial. Longe disso. Era no tempo do virtual, do remoto, do pavor, da incerteza. Era no tempo do vírus.


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