Nos passos de Arthur Bispo do Rosário

Nos passos de Arthur Bispo do Rosário

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Arte e redenção

 

      Jovem jornalista, editando um jornal de psicologia, conheci a vida e o trabalho de Arthur Bispo do Rosário. Fiquei entre perplexo e deslumbrado. Eu estava cansado de teorias e queria encontrar a “verdadeira vida”. Tomei um choque de beleza e de realidade. O que era aquela vida que me surgia como se fosse a de um personagem de Lima Barreto? Que obra era aquela que me fazia pensar nos dadaístas, nos surrealistas, nos geniais vanguardistas europeus? A arte definitivamente era uma abertura para percepções sem limites.

Comecei a falar de Arthur Bispo do Rosário como se o conhecesse. Os resumos biográficos virtuais descrevem-no sem rodeios: “Negro, pobre e nordestino, ele foi boxeador e biscateiro”. Depois de surtar, no Rio de Janeiro, foi preso e fichado “como negro, sem documentos e indigente”. Passaria 50 anos na Colônia Juliano Moreira, descontado o tempo de uma longa fuga, sob o diagnóstico de “esquizofrênico-paranoide”. No hospício, surgiria o grande artista, o criador de objetos sublimes com materiais recicláveis ao alcance das suas mãos.

Eu já passei muitas horas tentando decifrar a arte de Rosário. O que se esconde por trás das suas colagens de fragmentos tão falsamente díspares quanto fascinantes? Emana de cada objeto uma estética singular, profundamente humana, dolorosa, cotidiana, de uma beleza inclassificável, inusitada, radical. São imagens que não param de sussurrar alguma coisa. Um artista de vanguarda vítima de uma ciência retardatária, que encarcerava os “desviantes”, e de um imaginário de preconceitos convertidos em expressões de bom senso e normalidade.

Estamos em Sergipe. No caminho de Aracaju para Brejo Grande, de onde se pode acessar a foz do Velho Chico e tomar um banho de paisagens deslumbrantes, apesar da tristeza do assoreamento que engole nacos do rio, passa-se por Japaratuba, cidade natal de Arthur Bispo do Rosário. É uma desses lugarejos nordestinos típicos, entre pacato, simpático e modorrento. A vida flui entre o carnaval, as festas juninas, uma tradicional festa de reis, com bisnagas de água, jegues passeando pelas adjacências e a sombra farta de mangueiras. Um lugar onde as rugas das pessoas ainda falam de honestidade e trabalho.

A cientista social Marta Claus, que estudou a trajetória desse gênio esquizofrênico, escreveu: “A originalidade que reveste a obra de Bispo é fruto de vários fatores a ausência de formação acadêmica, a sua não relação com tempo cronológico, a falta de convívio social, e escassez de matéria prima especializada. Na solidão de seu ser reside a sua determinação. Ao reunir objetos banais na Colônia Juliano Moreira transforma-os em obras e instalações surpreendentes”.

Do nascimento em Japaratuba para a morte em Jacarepaguá. Uma vida de reclusão, delírios, alucinações e arte. O que me chamou a atenção foi a enorme inscrição na entrada de Japaratuba: “Cidade onde nasceu Arthur Bispo do Rosário”. Que virada! O louco, o miserável, o desprezado, o repelido, o segregado, enfim, motivo de orgulho maior.

 

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