Nosso futuro tecnológico

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Para que serviremos?

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Cenário projetado

 

      Tudo mudou. As ruas são cobertas e climatizadas. Vive-se a 22 graus. Existem pontos de observação para ver o céu ou descer dos helicópteros. Livros impressos não existem mais. Nem jornais. Táxis desapareceram. Imaginem o atraso que seria alguém levantar a mão para parar um carro na rua. Isso só pode ser feito por meio de aplicativos. O mesmo acontece nos restaurantes, onde as pessoas pedem os pratos antes de chegar ou quando já estão sentadas sempre com a mediação de dispositivos eletrônicos. Existem telas de conversação que permitem interagir com os outros, mesmo com quem se está dividindo a mesa. A conversa sem mediação é malvista. Não permite a utilização imediata de gráficos, de citações e de vídeos ilustrativos.

      “Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”. Essa tese pré-histórica de um maluco francês chamado Guy Debord ganhou nova redação: tudo que era vivido diretamente passou a ter mediação tecnológica. Fora disso, nada subsiste. A mediação é um dogma. Não há mais placas com nomes de ruas. Nem luminosos com nomes de lojas. Basta apontar um celular para uma parede e o nome do lugar aparece junto com informações complementares. No caso de nomes de artistas homenageados em ruas, tocam músicas do citado. Não há problema de bateria descarregada. Basta roçar o aparelho num poste para que a bateria seja imediatamente carregada. Claro que não se faz isso preferencialmente com celulares, mas com óculos apropriados ou com um chip adesivo colado na haste de quaisquer óculos. Implantar chip no corpo já não se faz por ser invasivo e desnecessário.

      As fábricas de guarda-chuvas faliram. Há quem os use ainda como adereços de carnaval, uma festa que sobrevive em lugares considerados primitivos. A indústria de roupas de inverno quebrou. O trabalho mudou. Não há mais deslocamento massivo de trabalhadores todos os dias. O transporte público coletivo encerrou as suas atividades. Sindicatos fecharam as portas. A legislação trabalhista perdeu o sentido. Ninguém mais se aposenta. É uma noção ultrapassada. Muitas pessoas passam a vida sentadas consumindo entretenimento e recebendo o necessário à subsistência por tele-entrega. As energias belicosas foram deslocadas para games.

      Um jornalista sugeriu que é vida de frango em aviário. Perdeu todos os seguidores nas redes sociais, que é onde se decidem os destinos sociais, e foi condenado a doze anos de silêncio. Não há mais eleições. Vive-se na democracia virtual. Tudo é decidido por maioria nas redes sociais. Há câmeras por toda parte, inclusive nos quartos dos casais, para controlar tentativas de abuso. A ideia de privacidade perdeu terreno para a de transparência total. Outra tese do louco Debord – “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens”– foi reescrita: a existência não é um conjunto de vivências, mas uma relação social entre pessoas mediada por dispositivos tecnológicos.

Amor e amizade ­– Nunca se viveu tão serenamente. O corpo de cada um é monitorado em tempo ao real. Ao menor sinal de agitação, uma dose de calmante é administrada. Adotou-se a renda universal de consumo. Cada um recebe do Estado para consumir. As máquinas fazem quase tudo. Marx e Engels foram vencidos por Huizinga. O homo faber foi substituído pelo homo ludens. Estamos no mundo para brincar. Aplicativos escrevem ficção para nos distrair. Ou fazem música. Ou inventam novos jogos. Outro dia, alguém citou uma velha frase: “trabalhadores, uni-vos”. As redes bombaram:

– Quem?

– Para quê?

– Agora não posso. Estou jogando.

      Amor e amizade ganharam novas dimensões. O amor passa por três estágios: gasoso, líquido e sólido. A solidez dura o tempo de um ciclo. A amizade é flutuante. Como se pode ter amigos por toda parte graças aos últimos tradutores automáticos, que permitem interações perfeitas em tempo real em qualquer língua, ninguém tem menos de um bilhão de amigos. Já há quem seja amigo de todas as pessoas do planeta. Acabou a obrigação de falar ou escrever em inglês. As línguas são automaticamente traduzíveis sem erros ou ambiguidades. Viagem é coisa do passado. Para que se deslocar fisicamente se é possível obter todas as sensações sem sair de casa?

      O futebol tornou-se mais importante. O Brasil possui 230 campeonatos ao mesmo tempo com televisionamento direto. Há torneios por idade, peso, altura, horário, local de nascimento, para destros, ambidestros, canhotos e o que se quiser. Predomina o capitalismo total de Estado. A administração das máquinas domésticas é feita em sistema de absoluta paridade pelos cônjuges e demais membros da comunidade familiar. O Estado fiscaliza e aplica duras penas a quem descumpre as regras. O presidente da República tem a função simbólica de anunciar o começo do ano e retirar-se para o seu JK. Banho de mar está proibido. De sol, nem pensar. Tudo em nome de outra frase do excêntrico Debord: “O que é bom, aparece. O       que aparece, é bom”. Tradução: “O que é bom, funciona. O que funciona, é bom”.


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