Nunca mais fui o mesmo depois da Covid

Nunca mais fui o mesmo depois da Covid

Um ano de más lembranças

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      Ontem fez um ano que fui hospitalizado com Covid-19. Fiquei seis dias internado. Não precisei de oxigênio nem de UTI. Não fui intubado. Mas nunca mais fui o mesmo. Por quê? Porque o mundo não foi mais o mesmo. Quando eu estava hospitalizado, sozinho num quarto confortável, atendido por ótimos médicos ainda não sobrecarregados, olhava televisão e torcia para que as mortes não atingissem o terrível número de três mil. Já passamos de 300 mil. Nunca mais fui o mesmo por várias razões: ainda não voltamos a dar aulas presenciais, amigos morreram – um deles na semana, a esposa na semana seguinte –, não vi mais o Guaíba, nunca mais pisei no aeroporto de Porto Alegre, não saí da cidade, não fui a Paris e Santana do Livramento como todo ano, vi minha mãe uma só vez, não mais entrei num cinema ou num restaurante, comemoramos aniversários isolados em casa, tive sete meses de sequelas, incorporei o medo de uma reinfecção como espectro.

      Quando saí do hospital, diante de uma novidade devastadora, quis me certificar de que estava livre do vírus. Testei positivo quatro vezes ao longo de três meses. Só dei negativo no quinto teste. Vivemos de máscara em casa por mais de cem dias. Dormi num colchão todo esse tempo. Temia ainda estar transmitindo. Queria proteger a Cláudia. Ela não pegou. Cronistas, segundo a regra do gênero, devem dizer “eu” para universalizar o singular e compartilhar o que todos pedem sentir. A dor nas costas se implantou. A respiração falhava. Usei bombinha de asma. A voz claudicava. Como fazer certos exames adiáveis quando não se tem um teste negativo? Eu me cobrava ser sincero ao máximo. Fiz fisioterapia respiratória por aplicativo. Li tudo sobre a doença.

      Nunca mais fui o mesmo por ver o cotidiano de todos ser outro. Por algum tempo, quando tudo parecia mais tranquilo, caminhamos mascarados na Redenção. Depois, quando tudo se precipitou novamente, paramos. Um ano sem ir sem ir à Famecos/PUC, sem comer sob as árvores do Barranco, sem pisar nas areias de uma praia, sem abraçar amigos. Alguns encontros fizemos em praças e parques com algum amigo fiel: de máscara e com muita distância para falar de assuntos essenciais. Vimos os números de mortes crescerem sem parar, vimos pessoas perderem seus empregos, vimos autoridades hesitarem, vimos promessas vãs serem feitas, vimos o futebol parar e voltar como se o vírus ignorasse estádios, vimos o final de ano se encher de festas perigosas, vimos, da janela, as ambulâncias chegando ao hospital e carros funerários saírem, vimos a displicência de muitos virar medo e até pânico.

      Vimos a doença se aproximar de amigos e familiares. Vimos a morte levar gente de quem a gente gostava. Como ser o mesmo? Adoeci em março. Só me senti em forma em novembro. Se não sofri infectado, padeci meu pedaço depois. Quase sinto a morte de cada pessoa como se fosse a de um conhecido. Digo quase por pudor. Não sou mais o mesmo. Tenho na alma as cicatrizes que temi guardar nos pulmões. Aprendi a ter heróis: o pessoal da saúde e os criadores de vacinas. A ciência. Peço desculpas por ter voltado a este assunto. Prometo ser positivo. Quer dizer, negativo. Isto é, um ser vivo, pulsante e objetivo.

Ter escapado me faz solene. É meio como andar de toga.


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