O último ato de Getúlio Vargas em 1954

O último ato de Getúlio Vargas em 1954

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Fragmento de meu livro "Getúlio"
*
A festa de Café Filho e dos seus amigos continua. Bejo encontra a cunhada no corredor e confessa-lhe que terá de depor no Galeão. Chora. Darcy o abraça com carinho, como uma mãe, com a ternura que sempre teve pelo caçula dos Vargas. Lutero aproxima-se, tem também os olhos vermelhos e inchados. “Estou com medo pelo papai”, diz. “Calma, guri, não vai acontecer nada”, exclama Bejo. Darcy acaricia o rosto de Lutero. A intuição do fim a leva a pensar no começo: Lutero de uniforme do Colégio Militar de Porto Alegre, em 3 de outubro de 1930, resmungando contra os homens que haviam invadido o seu quarto no Piratini. Ela, nervosa, mandado os filhos para a casa de uns amigos, afastando-os do perigo das armas.
Não retém mais as lágrimas. Chora pelo que foram, pelo que são, pelo que o marido ainda poderia fazer pelo Brasil. Volta para o seu quarto. Em seguida, já de óculos escuros, busca o alívio da brisa fria numa janela voltada para o parque do Catete. Sabe que a grande caminhada do poder terminou e que o peito do homem da sua vida deve estar dilacerado. No Ministério da Guerra, Zenóbio prepara-se para receber os generais e oficializar a notícia do licenciamento do presidente da República.
De Minas Gerais, Juscelino telefona para prestar solidariedade. Mas é tarde para incomodar Getúlio. Nos dias anteriores, soubera vagamente dos recados de Góis o alertando para não se deixar apanhar em armadilhas. Mergulhado, outra vez, em seus pensamentos, Getúlio revê os rostos jovens de Góis Monteiro, Osvaldo Aranha, João Neves, Zé Américo, João Pessoa. A mente dá um corte brusco e já é o rosto de menina de Darcy que lhe aparece numa manhã de São Borja. Alzira entra no quarto e faz barulho. Que anda fazendo ali, ainda, a rapariguinha?
– Ainda não foste dormir?
– Durmo quando eu quiser.
– Pois então, sua malcriada, vá embora que eu vou continuar dormindo, responde ele, rindo.
– Fiz uma travessura. Falei com alguns militares nossos amigos. Ainda podemos reagir.
– Não adianta mais. O Zenóbio já aceitou ser ministro do Café.
Na frente do Catete, com o nascer do dia, aumenta o número de manifestantes. Arinos espia por uma janela e espanta-se com a fúria da multidão. Esperam, certamente, a saída humilhante do presidente para apupá-lo com uma vaia imerecida. Não, Getúlio não era o “barbado”, não era Washington Luís, não era o presidente deposto, descendo, ao cair da noite de 24 de outubro de 1930, também um 24, as escadas do Guanabara, preso, humilhado, sob as vaias da população, sob os gritos de “dá nele, dá nele”.
No restaurante Lamas, no Largo do Machado, Paulo Amato consulta o seu relógio Eterna-Matic com calendário, uma moda luxuosa, toma um café puro e forte, com pão e manteiga, folheia um jornal e escolhe um programa cultural para a noite. Pretende, enfim, relaxar. Bom seria um rebolado da “pornofônica” Dercy Gonçalves”. Há de tudo para o dia, até uma exposição do pintor Iberê Camargo, que conhece pessoalmente, mas não lhe interessa. Oscila entre um espetáculo musical de Silveira Sampaio e Guio de Moraes, na Beguin do Hotel Glória, “No País dos Cadillacs”, e o filme “Como Agarrar um Milionário”, embora outros títulos, como “História Proibida”, no Serrador, e “Anjo do Mal”, dirigido por Samuel Füller, o façam sorrir ironicamente. Acabou, pensa. Num canto de página, lê que, três dias antes, nascera Tereza Cristina, a neta do ator Procópio Ferreira, filha de Bibi. Por que lhe chama atenção aquilo? Não sabe. A memória é um arquivo morto, pensa.
Generais reunidos, às 7 horas, Zenóbio da Costa, exausto, sem dormir, mas já bem escanhoado e com os olhos faiscando, jura pela sua honra sempre ter sido leal ao presidente e à sua função e ordena ao major Pedro Cavalcanti que proceda à leitura da nota de licenciamento redigida após a reunião ministerial da noite passada. Estampa-se no rosto de cada um a decepção. Juarez Távora baixa os olhos. Fiúza de Castro sacode a cabeça, inconformado.
– Licença provisória?, questiona, grosseiramente.
– Como?, ganha tempo Zenóbio.
– Que vai ser depois?, insiste Fiúza.
– A licença do presidente é definitiva, pronto, diz Zenóbio, num impulso.
– Definitiva?
– Foi o que ouvi dos ministros depois da reunião.
– Ah, então a coisa muda de figura.
– A ordem será mantida?
– O senhor tem a nossa garantia, ministro, de que a ordem será mantida. Aproveito para louvar e enaltecer a sua coragem, a sua bravura, a sua honra e a sua equilibrada condução dos problemas num período tão delicado da vida da nossa pátria, proclama Fiúza.
Estranhamente abatido, Juarez Távora faz um gesto com a mão direita, parece que vai pedir para falar. Todos esperam que se pronuncie. Alto, tez bronzeada, com sua “cara de medalha”, impõe respeito desde antes da Revolução de 1930, quando era simples capitão. Ninguém esquecia a sua fuga da fortaleza de Santa Cruz, agarrado numa corda de lençóis, para continuar a luta contra as oligarquias. Depois de alguns segundos de hesitação, deixa a mão robusta recair sobre o colo e permanece em silêncio. Descontrai-se a atmosfera e todos se cumprimentam pelo fim da crise.
Em poucos minutos repercute no Catete mal-amanhecido a declaração de Zenóbio aos generais. Há, no palácio, uma atmosfera de casa abandonada, de tapera, ou de prédio público depois de uma catástrofe natural. O ex-chefe de Polícia, general Âncora, entra esbaforido na sala de Caiado de Castro, onde estão, um tanto confusos, Tancredo Neves e Bejo, e despeja:
– O Zenóbio disse que a licença é definitiva.
– Como definitiva?, espanta-se Tancredo.
– Definitiva, definitiva…
– Mas se é uma licença!
– Agora é uma renúncia, murmura Âncora.
Descontrolado, Bejo corre para o terceiro piso. Vai num trote de homem da sua idade, segurando o coração, as tripas e a barriga. Já não é um menino. Sente o físico pesar-lhe até alcançar o elevador. Entra no quarto e encontra Getúlio acordado.
– O mulato disse aos generais que a licença é definitiva.
– Então quer dizer que estou deposto?
– Não sei se estás deposto, mas sei que é o fim.
– Por quê? Quem é o culpado?
– Nós.
– Que estás dizendo?
– Foi o Lutero, Getúlio.
– Hein?
– Fui eu.
– Que estás dizendo? Cala-te.
– Fomos nós. Todos nós.
– Nunca mais repita isso. Eu sei que não foram vocês. Eu sei quem foi. Sei quem e como me levaram a isto.
– Sabe?
– Sei. Agora vai lá tirar a limpo isso de licença definitiva.
Novamente sozinho, com o rosto entre as mãos, numa atitude que não lhe é peculiar, Getúlio pensa no “grande gesto”. Passa-se uma fatia de tempo que lhe parece interminável. Toca a campainha. O camareiro e barbeiro Pedro Barbosa entra imediatamente. “Me chame o Benjamim, Seu Barbosa”. O homem sai. Getúlio ainda se recosta por alguns minutos. Às 8h10min, sai do quarto, só de pijama, para espanto dos que ali se acham, tão inusitada é a cena, atravessa o corredor e vai até o gabinete do terceiro piso. Assusta o mordomo Zarattini, sentado à porta da sala. Cumprimenta-o com um leve oscilar da cabeça. Avista Alzira falando ao telefone. Enxerga Tércio, dormindo em outra poltrona, e lembra-se de ter esquecido de mandá-lo embora. No segundo pavimento, Lourival junta livros e caixas de documentos e os carrega para o carro, no pátio do palácio. Vai guardá-los na casa do seu chefe de gabinete, José Sette Camara. Getúlio volta para o quarto, pergunta, rispidamente, o que Barbosa ainda faz ali, controla-se, ao perceber a mágoa nos olhos do homem simples, e pede-lhe que se retire, quer descansar mais um pouco.
Deita-se. Vê-se no trem subindo de Porto Alegre para São Paulo, ao encontro da revolução, resfolegando rumo à batalha de Itararé, a batalha que não houve, o confronto vencido sem luta, onde percebeu, pela primeira vez, que o adversário recuava para nunca mais desistir de contra-atacar pelos flancos. Vê-se, em Porto Alegre, fardado, declarando, solene, patético, “Rio Grande, de pé pelo Brasil. Não desmentirá teu destino heróico”. Vê-se, de novo, diante de Darcy, em 1950, ouvindo-a dizer, tristonha, que nada a convencia da necessidade de que ele voltasse ao Catete. Pressentia o desastre ou, simplesmente, queria vê-lo descansar.
Vem-lhe, então, à mente a frase anotada vinte e quatro anos antes, numa tarde de primavera, 3 de outubro de 1930, no seu diário de revolucionário com a faixa de presidente de Estado: “Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso”. Agosto…, pensa. Já comi muita carne, pensa. Segura o revólver, calibre 32, cabo de madrepérola, leva-o dois dedos abaixo do mamelão esquerdo. Chegara num 24. Partiria num 24. Respira fundo, muito fundo. Se não posso impedir o golpe como homem, eu o farei como cadáver, pensa. A mão treme-lhe por um segundo, antes de petrificar-se numa decisão sem volta. É o último lance. Dispara. Um tiro no coração! Abre-se um orifício no pijama listrado.
São 8h35min de 24 de agosto de 1954, dia de São Bartolomeu e do nascimento, em 1918, de Getulinho. Em 29 de outubro de 1945, o mesmo dia, nove anos antes, da morte da sua mãe, fora deposto por seus generais. Na sua longa carreira, vencera duas eleições diretas: a primeira, em 1930, fora invalidada pela fraude e revalidada pela força das armas; a segunda, em 1950, sofrera todas as tentativas possíveis de fraude, com a patética discussão sobre a falta de maioria absoluta, e terminava, agora, pela força de uma só arma. Na rua do Catete, as pessoas, subitamente despertas, caem de joelhos e choram pelo presidente “assassinado”.

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