O autor nu na sessão de autógrafos

O autor nu na sessão de autógrafos

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Autor na rua

(nu)

 

      Outro dia, entre amigos, Cláudia, Marcelo, Ana Laura, Luís e eu, esboçamos uma peça de teatro. Luís, na verdade, só fez objeções que poderiam ter atrasado o desenvolvimento da arte. Persistimos. Antes da exibição, no palco, uma pessoa da plateia sorteia se o elenco se apresentará vestido ou nu. Não ficou definido se essa pessoa estará vestida ou nua. Ou se haverá um sorteio para decidir também sobre isso. Escreverei o drama em transe assim que tiver tempo para abandonar a realidade. Faz algum tempo que não escrevo para teatro. Na última vez, eu tinha 17 anos. A peça, da qual também fui o protagonista, chamava-se “Os rebeldes”. A trilha era de Leno e Lília.

Fui chamado na Polícia Federal, em Santana do Livramento, depois da uma apresentação na distante Lajeado, por uma tirada do meu personagem, apesar do ocaso da ditadura. O meu rebelde, por ingenuidade e indignação precoce, referia-se a presidentes da nação com fdps. Eu ainda não tinha consciência de que eles eram apenas generais de plantão no poder. Também não poderia imaginar que, quase 40 anos depois, pudesse haver presidente no cargo sem ter sido expressamente eleito pelo voto popular para executar o seu projeto.

Em minha nova peça, muito esperada pelo público da nossa conversa noturna, farei também as letras das músicas. Será um musical. A tromba d’água. Imagino minhas letras na voz da maravilhosa cantora negra Glau Barros. A direção terá de ser de Luciano Alabarse. Não posso prescindir dos melhores. Espero convencer Nei Lisboa a musicar minhas composições e a fazer par com Glau nas interpretações. Um título possível seria “Pelados no Porto”. Óbvio demais? É possível. Na peça, um fantasma (tênue alusão erudita a Hamlet) vaga em busca de um golpe (robusta referência vulgar à situação do país).

Edouard Manet entrou para a história da pintura com seu “Almoço na relva”. Relva é bem poético. A poesia costuma usar palavras sem emprego no dia a dia. O almoço era na grama mesmo. A modelo está nua, num piquenique, entre dois convivas vestidos. A impressão que passou foi de escândalo absoluto no Salão dos Recusados, em 1863, na conservadora sociedade francesa. Só o que foi recusado ou processado por atentado aos bons costumes resta: As flores do mal, de Charles Baudelaire, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e a pintura de Manet. Hoje, o quadro é uma das preciosidades do Museu d’Orsay, em Paris. Se a ideia era “épater le bourgeois” (chocar o burguês), deu certo.

Saltamos da peça para outros empreendimentos culturais ousados. Imaginamos um lançamento com o autor nu. Eu. A nudez estava na pauta. Luís afirmou que tudo isso já foi feito. Exigimos provas. O sinal da internet estava fraco e o espumante era farto. Ele não conseguiu enterrar nossos planos com suas duchas de sabedoria inconveniente.

– Todas essas coisas já foram feitas – fulminou.

– O sorteio, não – reagi.

– Tudo e muito mais.

– O autor nu no autógrafo, não.

Falou-se no lançamento de O homem nu, do mineiro Fernando Sabino. Não se afirmou que o cronista e romancista estava nu na sua sessão de autógrafos. O ator Cláudio Marzo teria feito isso por ele. A terceirização foi descartada. O Almoço Nu, de William Burroughs, não foi lembrado. Não é de duvidar que o escritor tenha tirado a roupa para lançar seu livro, em Paris, em 1959, sobre o grama de um bosque da cidade das Luzes. Planejamos também a campanha publicitária de uma nova obra, Tapa-sexo. Nela, como autor, apareço pelado com a capa do livro cobrindo minhas vergonhas. Em caso de haver alguma.

Enquanto tudo permanece em planejamento, neste domingo, 14 de agosto, de verdade, mas verdade verdadeira mesmo, lançarei meu novo livro, Corruptos de estimação e outros textos sobre o golpe hiper-real, a partir das 11 horas, no Brique da Redação. Será na banca 51, do Zé dos Livros, quase na João Pessoa. O autor, este que vos escreve, estará nu metaforicamente. Exposto em praça pública. Na rua. Pelado e com as mãos nos bolsos. Cinco títulos meus estarão disponíveis a preços escandalosamente obscenos: de R$ 10 a R$ 20. É situação que não se repetirá. Só a exclusividade justifica o acontecimento. Se sobreviver ao mico, só farei novos lançamentos de “manteau” (o sobretudo que os franceses usam seis meses por ano).

A sessão de autógrafos acontecerá. Todos estão convidados, defensores do golpe ou do impeachment, direita, esquerda ou terceira via, petralhas e coxinhas, lacerdinhas e guevarinhas, carinhosamente falando, é claro, que a ternura sempre deve prevalecer. Ainda não defini se haverá sorteio, caso haja fila, para decidir se tiro ou não a roupa. Vai depender muito da temperatura. Se eu ficar nu, as selfies só serão liberadas para quem adquirir livro e pedir autógrafo. Casos omissos serão resolvidos pela comissão organizadora. Para salvar os livros e as ararinhas eu me disponho a tirar a roupa. Dizem que autor e editor morreram. Quero ver se o leitor está vivo.

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