O consumo de experiências no capitalismo

O consumo de experiências no capitalismo

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O importante é ser consumidor.

Existimos para isso.

Já fomos cidadãos. Era muito chato.

Hoje, somos, antes de tudo, consumidores.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem será substituída pela Declaração Global dos Direitos do Consumidor.

O capitalismo tem as suas leis. As únicas que interessam.

As leis do interesse.

A publicidade do tempo dos reclames vendia produtos. Era muito simples e rasteiro. O sabão em pó era bom por lavar mais branco. A sofisticação fez a publicidade deixar de lados os produtos, com suas limitações, e vender conceitos. Um estilo de vida. Também isso passou. Estamos na era do “turismo romântico” e de consumo de sensações.

A publicidade, como diz o historiador Yuval Noah Harari, não vende viagens, mas experiências. Muda tudo. Não se vai ao Egito para conhecer as pirâmides, mas para viver uma experiência existencial renovadora.

Harari é bom de frases: “A história é o que algumas poucas pessoas fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes de água”. A experiência é o que poucas pessoas conseguem fruir enquanto a maioria está preenchendo formulários ou organizando pastas de documentos no computador. Não vivemos sem uma boa ficção que dê sentido às nossas vidas passageiras. Harari cutuca: “A elite do Egito antigo gastou sua fortuna construindo pirâmides e mumificando seus cadáveres, mas quase ninguém pensou em ir fazer compras na Babilônia ou ir esquiar na Fenícia. As pessoas hoje gastam grandes somas de dinheiro com férias no exterior porque realmente acreditam nos mitos do consumismo romântico”. O casamento vai mal? Uma viagem a Miami ou Paris. A morte se aproxima? Uma viagem a Índia. O tédio nos domina? Uma viagem a qualquer lugar onde se passa estourar o cartão de crédito.

O livro de Harari, “Sapiens, uma breve história da humanidade” (L&PM), é um balde de provocações ao senso comum: “Os ocidentais são ensinados a desprezar a ideia de hierarquia social. Eles ficam chocados com as leis que proíbem os negros de viver em bairros de brancos, ou estudar em escolas de brancos, ou ser tratados em hospitais de brancos. Mas a hierarquia de ricos e pobres, que autoriza os ricos a viver em bairros distintos e mais luxuosos, estudar em escolas mais distintas e de maior prestígio e receber tratamento médico em instalações distintas e bem equipadas, parece perfeitamente sensata para muitos norte-americanos e europeus”.

Qual a diferença? O mérito? Harari zomba dessa ficção: “Mas é um fato comprovado que a maior parte dos ricos são ricos pelo simples motivo de terem nascido em uma família rica, enquanto a maior parte dos pobres continuarão pobres no decorrer da vida simplesmente por terem nascido em uma família pobre”. O sistema limita-se a reproduzir as suas desigualdades por meio dos seus mecanismos de educação. Cada sociedade tem a sua hierarquia. Viver na base da pirâmide é uma experiência existencial. Os indianos organizaram-se em castas. Formalizaram e sacralizaram a barbárie. Chamaram isso de sabedoria milenar. Nós, ocidentais, damos outro nome a isso: meritocracia.

Harari é irado: “Dinheiro gera dinheiro e pobreza gera pobreza”.

Clennon King, um estudante negro americano, tentou fugir dessa lógica, em 1958, com uma atitude insana. Quis ingressar na Universidade do Mississipi. Foi mandado para um hospício. Mulheres passaram por humilhações semelhantes. Queriam ignorar a “hierarquia de gêneros” apresentada como natural. Só em 1997, a Alemanha criou uma lei para punir estupro conjugal. Até ali, marido estuprar a esposa era muito natural.

Natural mesmo é ser consumidor.

A evolução das espécies é marcada pela vitória do que melhor se adapta.

O consumidor está no topo da cadeia alimentar.

Alimenta o capitalismo, que o devora.

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