O dia em que Getúlio acertou o coração da mídia

O dia em que Getúlio acertou o coração da mídia

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– Um tiro!, exclama Barbosa.

– Foi aqui?, pergunta o major Hélio Dornelles.

– Foi.

– Alzira, seu pai, grita uma voz quase estranha, talvez pelo pânico, sacudindo, pelos ombros a filha de Vargas.

Precipitam-se todos para o quarto. Estendido na cama, braços abertos, uma perna para fora do leito, Getúlio agoniza. Dornelles é um dos primeiros a vê-lo assim. Quando Alzira entra, Getúlio ainda lhe sorri, enquanto o sangue que salta do orifício no pijama de listras inunda-lhe a blusa. A filha repete como um autômato: “Não pode ser, não pode ser, tu me prometeste”. Adalgiza chega com Dona Darcy e ainda sente os últimos espasmos do corpo. Getúlio busca, com os olhos congestionados, o rosto de Darcy. Caiado de Castro irrompe e desmaia. Horas depois, dirá: “Getúlio Vargas morreu de um coice de Bejo Vargas”. Amaral Peixoto socorre a sua mulher. Lutero, acordado por Zarattini, em prantos, examina o corpo do pai, toma-lhe o pulso, pede ao Doutor Flávio que ausculte o moribundo. Acabou. Guilherme Arinos olha para o cadáver e sente a pior dor da sua vida, a dor da perda do homem que lhe mudara para sempre a vida. Lá fora, a multidão já reza. Arísio Viana, diretor do DASP e amigo de Getúlio, grita que não podiam ter deixado o presidente sozinho. Depois, prático, começa a tirar-lhe o pijama. Chegam o médico e os legistas. Lutero quer uma autópsia.

Toca o telefone na redação da Última Hora. Luís Costa, titular da coluna “O Dia do Presidente”, berra para um Samuel Wainer repentinamente incapaz de ouvir bem: “O presidente acaba de se dar um tiro no coração”. O Profeta corre à oficina do jornal, recupera a página composta do dia anterior e prepara uma “cartola”, um simples “chapéu” para o título da edição morta: “Ele cumpriu a promessa – Só morto sairei do Catete”. Depois, senta-se e chora convulsivamente. A Tribuna da Imprensa preferiu um quase discreto e neutro “Suicidou-se Getúlio Vargas”. Mas Café Filho já adverte: “Minha guarda pessoal será a minha mulher”.

Pelas 9 horas, tendo tomado café em casa, Juarez Távora, acompanhado pelo seu ordenança, major Mauro, dirige-se para a Escola Superior de Guerra. No cruzamento da rua São Clemente com a Praia de Botafogo ouve, no rádio, a notícia do suicídio de Getúlio Vargas. Dirá mais tarde que, já na reunião do Ministério da Guerra, sentira vergonha por Zenóbio e apreensão pelo futuro das Forças Armadas, mas se calara por “já ter recebido demasiadas contusões nos desencontros daquelas três semanas de crise” e por, certamente, “não suportar mais uma no limiar do seu desfecho”. Pressentia os futuros golpes e o cão tomando gosto por comer ovelhas. Ali mesmo, jurou nunca mais se envolver “em tentativas de corrigir, pela força, os erros ou omissões de nossos governantes”.

Em 1930, Juarez havia cometido um equívoco e errado a hora de agir, confundindo a ordem de Osvaldo Aranha para deflagrar a revolução na tarde de 3 de outubro, o fizera com um dia de atraso. Agora já não podia acertar os ponteiros com Getúlio. Estava tudo acabado. Dez anos mais tarde, acertaria o seu relógio com o golpe militar de 1964, mergulhando o Brasil em um quarto de século de ditadura. Na mansão de Joaquim Nabuco, na rua Icatu, onde ainda se acumulam as garrafas de Moet et Chandon Brut Imperial pela metade, Maria do Carmo, irmã de Afonso Arinos e dona da casa, diz a Lacerda e sua esposa Letícia: “Ele puxou a toalha debaixo da nossa festa!”.

No meio da confusão, Barbosa e Amaral Peixoto descobrem um envelope, na mesinha de cabeceira, encostado no abajur. É a carta que o próprio Amaral o vira assinar na noite anterior. Nesse meio tempo, o major Fittipaldi já resgatou da própria memória o conteúdo do bilhete que dias antes havia descoberto e o anotou com a própria letra, não se atrevendo a assinar o nome de Getúlio. Minutos depois, entregue a Vítor Costa, o texto é lido na Rádio Nacional: “À sanha dos meus inimigos deixo o legado da minha morte. Levo o pesar de não ter feito pelos humildes tudo o que desejava”.

Já estão todos lá, Mascarenhas, Osvaldo, Tancredo, José Américo. Abraçam-se e choram. Culpam-se por não terem percebido os sinais da tragédia anunciada. Tentam entender, buscam algo novo, uma mensagem de última hora, uma razão para a reviravolta. Osvaldo fala em “sacrifício por nós”, em gesto shakespeariano, em generosidade dramática. Zé Américo não compreende, quer saber se houve realmente um motivo novo, um estopim, a gota d’água. Já Amaral entrega também a carta a Vítor Costa para leitura na Rádio Nacional. Nas casas e nas ruas, o povo ouve e chora:

“Mais uma vez, as forças que os interesses contra o povo coordenaram novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, me insultam; não me combatem, caluniam-me; não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômico-financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei um regime de liberdade social. Tive que renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se às dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalhador. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se me desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional da potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, e mal começa essa a funcionar a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente. Assumi o governo dentro da espiral inflacionária, que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até quinhentos por cento ao ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma agressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta, por vós e por vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu sangue será a vossa bandeira de luta. Cada gota do meu sangue será uma chama imortal à vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o meu perdão. Aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo, não será mais escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram o meu ânimo. Vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”.

Amato ouve e sente que algo se quebra dentro dele. Sai pelas ruas atraído pelo uivo das multidões. No Catete, Tércio espia o corpo uma última vez, recolhe o volumoso material, oito cadernos pretos de capa dura, que lhe fora entregue por Vargas e desce pelas escadas. Ainda ouve Lúcio Meira dizer ao telefone: “Não Café, você não pode vir aqui”. Alzira lembra-se da chave e, aos gritos, joga-se novamente sobre o corpo. Está lá, a pequena chave do cofre, de onde tira os papéis que só mais tarde lerá, inclusive uma via da carta-testamento, mal batida, mas com assinatura, e um manuscrito:

“Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte.

Levo o pesar de não haver podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia.

A mentira, a calúnia, as mais torpes invencionices foram geradas pela malignidade de rancorosos e gratuitos inimigos, numa publicidade dirigida, sistemática e escandalosa.

Acrescente-se a fraqueza de amigos que não me defenderam nas posições que ocupavam, a felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei com honras e mercês e a insensibilidade moral de sicários que entreguei à Justiça, contribuindo todos para criar um falso ambiente na opinião pública do país, contra minha pessoa.

Se a simples renúncia ao posto a que fui elevado pelo sufrágio do povo me permitisse viver esquecido e tranqüilo no chão da pátria, de bom grado renunciaria. Mas tal renúncia daria apenas ensejo para com mais fúria perseguirem-me e humilharem-me. Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas. Velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor, não de crimes que não cometi, mas de poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes. Só Deus sabe das minhas amarguras e sofrimentos. Que o sangue dum inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus.

Agradeço aos que de perto ou de longe trouxeram-me o conforto de sua amizade.

A resposta do povo virá mais tarde”.

 

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