O Estado não existe

O Estado não existe

Só existe a sociedade organizada por meio do voto

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Do alto dos meus estudos em sociologia, história, antropologia e comunicação e da minha independência selvagem, afirmo: o Estado não existe. Salvo em ditaduras. Jamais em democracias. Não há Estado no Brasil. Já houve. Quando os liberais se queixam do excesso de intervenção do Estado na economia, erram o alvo. Quando os conservadores reclamam maior ingerência do Estado em costumes, enganam-se. O Estado é uma abstração. Não é o Estado que se mete na economia ou nos comportamentos. O Estado, na verdade, nada pode. Exceto quando, em regimes autoritários ou totalitários, devora a sua definição.

      Repito: o Estado não existe. O que existe então? A sociedade organizada. O Estado é a sociedade tomando decisões por meio dos seus representantes. Quem mantém a maconha na ilegalidade não é o Estado. É a sociedade por maioria dos seus eleitos. Quem proíbe o aborto ou multiplica os impostos tampouco é o Estado. Mais uma vez, é a sociedade organizada. Se os liberais querem menos impostos, basta ter maioria no parlamento para aprovar projetos de redução tributária. O Estado é uma miragem. O que os inimigos do Estado intervencionista abominam é a vontade da sociedade. Não é contra o Estado que se insurgem, mas contra as maiorias eleitas pela sociedade que fazem escolhas opostas aos seus interesses individualistas.

      Estado é o nome dados pelos inimigos da sociedade organizada ao poder coletivo do voto. Por trás do discurso contra o Estado esconde-se o repúdio à organização social. O voto pode tudo. Pode aumentar ou diminuir o tamanho do Estado. Pode até colocar militares no poder. Ao defender que tudo seja privatizado, o liberal pede que a sociedade tenha menos poder de voto sobre determinados assuntos. É a guerra entre indivíduo isolado e sociedade articulada. O individualismo é darwinista. Aposta na lei do mais forte. Acontece que a sociedade organizada é ainda mais forte. Darwinismo individualista contra darwinismo coletivo. O cúmulo da contradição é a defesa da regulação dos comportamentos pela sociedade (como Estado) e a desregulamentação da economia. Numa coisa, pode. Na outra, não mesmo.

      A sociedade é assim. Proíbe uma droga, libera outra. Proíbe a maconha, libera o álcool. Pressionada, busca argumentos “racionais”. Consegue racionalizações. Está no seu direito de escolher. Quando alguém diz que não quer o Estado se metendo na sua vida, está dizendo que não quer a sociedade se intrometendo nas suas coisas. A questão é: até que ponto a sociedade, por meios dos seus representantes, deve restringir a ação dos indivíduos? Qual é o princípio? Até hoje só um princípio me convenceu, o “princípio do dano” concebido pelo liberal John Stuart Mill. A sociedade só deve legislar sobre o que causa dano a terceiros. Há, porém, uma variante, que se pode chamar de dano ampliado, aquilo que prejudica a sociedade como um todo. Vale, por exemplo, para a lei do cinto de segurança. Se não uso e me acidento, a quem prejudico? Só a mim? Não. A sociedade pode ter de arcar com cuidados médicos. Por esse princípio ampliado, porém, a sociedade pode se meter em tudo. Ou não? Só ela mesma pode dizer.

     


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