O eterno retorno de Emil Ajar

O eterno retorno de Emil Ajar

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O livro infinito

Não, não estava liquidado. Ainda lhe restava um lance a jogar. Emilio Ajar sonhava em dedicar-se inteiramente à literatura. Faltava-lhe tempo. Até nisso a sua existência sonhadora era extraordinariamente ordinária. A vida de professor de francês o obrigava a sacrificar o melhor da semana com aulas que já não o encantavam. Nem a possibilidade de receitar (ou recitar) poemas de Baudelaire para os alunos aliviava a sua tristeza. Quando estava com 25 anos de idade, porém, ensinar francês dera-lhe satisfação, tempo para estudar seus autores prediletos e oportunidades para seduzir alunas bovaristas com sua pronúncia quase perfeita e suas lembranças de Paris, cidade que jamais visitara. Aos 46 anos, precisava apressar-se para não ficar pelo caminho.
Havia publicado 21 livros, entre romances, poesia, contos e crônicas. Não perdera tempo. Era o seu paradoxo. O tempo é que o perdera. Quase todo dia, era chamado de anacrônico. Quanto mais publicava, menos era conhecido. Não possuía o sentido do mito, talvez. Preferia Baudelaire a Rimbaud. Estava convencido de que para chegar a grande arte não era necessário abandonar a aldeia. O menino Jean-Arthur, de Charleville, agarrara para sempre a essência da vida, enquanto o homem Rimbaud a perdera em viagens bizarras por terras africanas. Jean-Arthur, em todo caso, conquistara a eternidade, sem dar a ela qualquer importância, antes de partir em busca da verdadeira vida. Aplicara um golpe genial no tempo, antecipando-se à sua passagem. Ajar, ao contrário, estava atrasado, sempre atrasado. Algumas obsessões o impediam de decolar. Gastava parte das míseras horas que lhe sobravam escrevendo livros que não eram lidos, jogando cartas com quase analfabetos e sonhando com uma mulher que o trocara por um vendedor de enciclopédias.
O desespero exige soluções radicais. Jogou num cavalo tobiano o único dinheiro que ganhara de direitos autorais pelo seu livro que mais detestava. Perdeu. O tobiano nem chegou a completar a corrida. Na metade do percurso, abriu para a direita e foi parar numa sanga, onde o jóquei aproveitou para se refrescar. Um velho desdentado o avisara: tobianos e mulheres de lábios carnudos não são confiáveis. Nem tudo era fracasso no cotidiano de Ajar. Uma menina de 17 anos, com seios capazes de provocar um motim numa prisão de alta segurança e ancas que incendiavam os finais de tarde, quando voltava da escola com os olhos fixos no horizonte ou nas vitrines de roupas de grife, invadiu-lhe a cama sem qualquer aviso prévio. Amaram-se até ele perceber que era a literatura ou ela.
Feito um mártir de uma causa obscura, rejeitou-a friamente. Ela chorou muito e prometeu se matar.
Morreu todas as noites, durante seis meses, nos braços pesados de um motorista de caminhão.
O infeliz pensou em tornar-se leitor. Não escreveria mais uma só linha. O plano eram bom e exequível, salvo por um detalhe: Ajar era viciado em escrever. Foi, então, que cometeu um pequeno roubo. Fez as contas e concluiu que, com modéstia, poderia largar o trabalho e, por fim, dedicar-se exclusivamente a escrever. Não queria como certo personagem de Borges escrever um livro que contivesse todos os livros do mundo e, de quebra, o mundo.
Queria escrever um livro infinito. Desse dia em diante, escreveu de manhã, de tarde e de noite. Nunca mais publicou uma linha. Finalmente teve sucesso.
Um sucesso, como dizem os especialista, de estima.
Um sucesso, como dizem certos psicanalistas, de autoestima.

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