O gari e o desembargador

O gari e o desembargador

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Porto Alegre, pelos dados do PNUD, é a cidade brasileira com a maior desigualdade entre brancos e negros levando em consideração o IDHM, indicador de qualidade de vida de renda, saúde e educação.

Eu fico perplexo.

Que lugar é este em que os garis são empreendedores cooperativados sem décimo-terceiro nem férias pagas de um mês enquanto os desembargadores, como no resto do país, recebem auxílio-moradia?

O limpador de rua é um trabalhador local sem vínculo empregatício. Uma espécie de empresário.

O magistrado é um funcionário cheio de proteções. Um proletário sob a proteção do Estado.

O dinheiro, claro, sai sempre do bolso dos contribuintes.

Daí o meu pesadelo.

*

Sonho sueco

 

      Dormir de barriga para cima me faz ter sonhos estranhos. Eu viro de lado, o sonho para. Volto a dormir de barriga para cima, o sonho retorna. Foi assim com esse sonho bizarro em que me vi sueco. O sonho foi assim: eu acordava no meio da noite transformado em sueco. Sem qualquer mudança física. Mas com outro nome: Gunnar Larsson. Vivi um dia de sonho nesse sonho como morador de Estocolmo. Trabalhava numa empresa dedicada ao comércio exterior. O sonho caiu justamente no dia de receber meu salário. Feitos todos os descontos, incluindo impostos, sobraram cerca de 40%. Conversei com meus colegas para saber se havia um erro ou se pretendiam fazer alguma manifestação contra esse abuso.

– Abuso?

– Do Estado?

– Como assim?

– Não é isso?

– Estamos muito satisfeitos com o que pagamos de impostos.

Em me belisquei no sonho para ver se não estava dormindo. Procurei um impostômetro e não achei. Perguntei se havia um dia da gasolina sem impostos. Riram. Um colega fez sinal de que era louco. Ouvi um casal discutindo como dividiriam os 16 meses de licença parental a que tinham direito. Fiquei tão perplexo que exclamei:

– Quem paga essa conta?

– A sociedade, as empresas, o sistema econômico.

– Os empresários não se mobilizam para acabar com isso, essa farra?

– Farra? Eles respeitam a lei e também têm filhos.

Visitei uma creche, uma escola de ensino fundamental e uma universidade. A merenda escolar é totalmente gratuita. O Estado subsidia as instituições privadas. A educação zela pela paridade de gêneros. Até estudantes estrangeiros são subsidiados pelo governo.

– Quem paga todas essas boquinhas?

– Nós, os contribuintes. É muito bom que seja assim.

– Mas isso não vai quebrar o país?

– É função do Estado dar boas condições de vida às pessoas.

Comecei a achar que estavam me zoando no sonho. Resolvi falar de aposentadoria. Minha colega Arne fechou a cara e soltou o verbo.

– Precisamos melhorar muito nesse campo. Temos sérios problemas. Hoje, a idade mínima para aposentadoria é 61 anos. A gente não vem ao mundo só para trabalhar. Precisamos ter tempo e condições de viver bem.

Tentei acordar. Não consegui. Um sueco gigante discursava:

– Nossas universidades são gratuitas. Não temos mensalidades escolares até o ensino médio. Garantimos uma renda a cada pessoa do nascimento aos 16 anos. Damos seguro-desemprego de 300 dias. Tratamento dentário para jovens é de graça. Óculos também. Temos férias de cinco semanas. Se adoecemos nas férias, podemos recuperar esses dias perdidos.

– Que loucura!

– Não sabia disso?

– Na verdade, sou brasileiro.

– Não leu a Cláudia Wallin?

– Essa parte, não.

Acordei. Que pesadelo ser um sueco tão reacionário!

 

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