O homem que venceu Juan Dahlmann, ou jogo de dama

O homem que venceu Juan Dahlmann, ou jogo de dama

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 João Anacleto desceu do trem em Palomas às 15h35 de um dia de sol pálido. Era um 4 de julho. Mas não fazia o frio costumeiro nem o céu se exibia como uma placa de chumbo. Havia poucas nuvens. Uma delas, mais longa e espessa, tinha a forma de um jovem elefante. A primeira coisa que o forasteiro viu foi uma bergamoteira carregada. Parecia uma mulher como um vestido alaranjado. Por isso ele terá sorrido? Caso se possa chamar de sorriso um risco nos lábios. O homem saiu da plataforma da estação com passo lento, o corpo oscilando para a direita. Vestia-se inteiramente de preto. O chapéu de aba larga escondia-lhe o olhar também sombrio. Ao passar diante da capelinha azulada, descobriu-se por um minuto. Não se benzeu. Tinha bastos cabelos grisalhos. Seguiu pelas ruas como se soubesse exatamente aonde ia. Caminhava com os olhos fixos no horizonte.

Ao chefe da estação, sem qualquer motivo, dissera com voz embargada e grave:

– A morte começa com o nascimento.

Entrou no bolicho da vila como se cumprisse o seu destino, esse termo que designa as previsões realizadas que nunca foram feitas. Não fosse um desconhecido, seria possível acreditar que procurava a sua infância ou algum esquecimento subitamente lembrado. Teve um estremecimento ao tirar o chapéu para cumprimentar.

De trás do balcão, o dono do lugar, um homem soturno, esquelético e amarelo, de barba grisalha e suja, respondeu com um murmúrio em tom de lástima:

– Juan, ao seu dispor.

– Juan?

– Juan Dahlmann, senhor.

Anacleto teve a impressão de conhecê-lo de algum lugar ao sul. Havia livros por todo lado. Uma mulher bonita e jovem apareceu e desapareceu rapidamente fazendo farfalhar a cortina de plástico que separava o bar da área privada da casa. Havia um baralho sobre o balcão. O bolicheiro serviu-se de um copinho branco e liso de cachaça. Ergueu lentamente os olhos, fitou o visitante e perguntou:

– Um trago?

– Venha daí.

Em pouco tempo, eram velhos amigos trocando confidências que se adensavam com a melancolia da penumbra e os latidos de um cão na estrada. Três ou quatro vezes, ouviu-se a expressão “mais ao sul ainda”. Depois, era o silêncio, um silêncio de cortar com machado. A tarde já caía cinzenta e irredutível quando Juan Dahlmann confessou:

– Foi assim que perdi tudo.

– Tudo?

– Tudo mesmo. Até esta casa. No carteado.

– Tudo?

– Não me sobra nada. Só me resta a Marcela.

– Por que não a aposta?

– A Marcela?

– Por suposto, homem. Tem valor. A Marcela contra as suas dívidas.

– Com quem?

– Comigo, ora.

– No truco?

– Não, o truco é muito lento. No velho e bom jogo do nove.

O jogo do nove é um pôquer simplificado. Cada jogador recebe duas cartas. Vence quem faz mais pontos num máximo de nove. As cartas de dez em diante são chamadas de negras e nada valem. Se um jogador tem sete pontos em mão, mas acha que o adversário tem oito, pode pedir uma terceira carta. Se receber um dois, está feito. Se receber um três, vai a dez. Dez é igual a zero. E assim por diante.

– Tchê, a proposta me tenta, mas de uma vez só é muito arriscado.

– Numa melhor de três.

Fez-se um silêncio solene. Ouvia-se o minuano assobiar lá fora como se fosse um violino langoroso. O inverno, com o cair da noite, voltava a galopar como um potro de imaginação. Um gato preto com uma pata branca subiu no balcão e postou-se ao lado do baralho numa pose de bibelô. Havia dois assim sobre uma mesa. Marcela afastou a cortina e olhou para os dois homens como se esperasse uma explicação. Teria ouvido? Os seus olhos eram negros. Profundamente escuros. O desconhecido encarou-a sem o menor pudor. Ela pronunciou uma palavra, que se perdeu abafada pelo apito do trem na curva do Alto Grande.

Dahlmann embaralhou as cartas sem tirar os olhos do rosto do forasteiro. Havia todo tipo de sulco na cara do homem. Escalavrada, essa era a palavra que se usava para rostos assim tão cheios de rugas e certamente de crimes. Os poucos minutos em que o dono da casa ficou misturando o baralho pareceram tão longos que, talvez perturbado, João Anacleto murmurou como se o silêncio exigisse uma explicação:

– A eternidade dura muito tempo.

– O tempo de ganhar ou de perder tudo – respondeu Dahlmann.

– Só a morte nunca perde – respondeu o estranho.

Coube ao bolicheiro dar as cartas. O desconhecido deixou as suas se acumularem sobre a mesa. Só as recolheu depois que o adversário já conhecia as que a sorte havia lhe destinado. Começou a abrir lentamente o par de cartas que lhe tocara. Nenhuma luz brilhou nos seus olhos opacos quando viu um sete de ouro resplandecer. Contemplava as faces de Juan Dalhmann como se esperasse ainda uma confissão. Perscrutava cada sulco do rosto do oponente, que se mantinha impassível, embora de uma rigidez incomum, feito um mármore. Tinha as duas cartas sobrepostas. Afastava-as lentamente com os polegares e os indicadores. O cachorro latiu. Dahlmann sentenciou:

– O destino lhe deu uma negra.

– Baralho não é gado par ser marcado, parceiro.

– Perco tudo, mas nunca trapaceio. Li nos teu olhos. Quer mais uma?

– Raramente a vida nos dá uma segunda chance – disse Tenório.

O recém-chegado largou as duas cartas sobre a mesa, meteu as mãos nos bolsos do casaco preto e sacou apetrechos de fumante. Começou a enrolar lentamente um cigarro. Envolveu o fumo amarelo e cheiroso numa seda muito fina e branca. Não tirava os olhos do bolicheiro. O gato preto colocou a patinha branca nas costas das cartas do desafiante, que lambeu o cigarro, para fechá-lo, sem expressar a menor emoção. A saliva empapou o papel. Os lábios do homem ficaram lustrosos e intumescidos. Marcela fechou a cortina com um gesto brusco. O minuano assobiou mais forte. O trem apitou.

– Sete pontos – cantou o visitante.

– Oito – respondeu Dahlmann.

– Sorte no amor e nos negócios – resmungou o forasteiro.

– Sorte?

– Não se pode ter tudo na vida, parceiro.

A segunda rodada foi mais rápida. Ninguém pediu cartas. O anfitrião arredou com a mão esquerda um livro que lhe tolhia os movimentos: A metamorfose. Um sorriso acendeu uma faísca no seu rosto tão cheio de velhos sulcos que lembrava uma lavoura abandonada:

– Oito pontos – gritou.

– Nove – balbuciou o desafiante.

O cachorro desatou a uivar. O trem já se perdera na distância. Era o vento que assobiava furiosamente. Juan levantou as cartas da sua terceira rodada depois de um trago mais alentado. Viu uma dama de copas surgir no lado direito das cartas. Um sete de espadas ergueu-se no outro lado. Era pouco. Talvez fosse o suficiente. Marcela surgiu mansamente e espiou por cima do ombro do marido. Seu olhar escureceu de vez. Já o rosto do desconhecido parecia petrificado. Pediu mais uma carta. Juan sentiu o sangue voltar a circular no seu corpo.

– Nove pontos – cantou o viajante.

*

Dois anos depois, num bolicho de Rivera, um homem alto e magro, de cabelos louros encaracolados e olhos de um azul faiscante, interpelou a mulher de corpo esguio que embaralhava cartas encostada no balcão como se esperasse um cliente ou brincasse de tirar a sorte.

– Como se chama?

– Marcela.

– Brasileira?

– Como tu.

– Sou Pedro Fischer. Queres ir embora comigo?

– O que eu ganharia com isso?

– Um homem.

– Prefiro jogar. Se perder, vou embora contigo.

– E se ganhar?

– Tu matas um homem para mim.

– Em que jogo?

– Nove. Uma única rodada.

A tarde estava quente. Marcela sacudiu a saia colorida. O homem riu. A blusa cavada deixava antever o despenhadeiro dos seios da mulher, que se inclinou deixando ver um pouco mais. Marcela distribuiu as cartas sem tirar os olhos dos olhos do recém-chegado. A sua mão era ruim. Duas negras. O homem pediu carta. Marcela também.

– Um ponto – confessou o jogador.

– Três – revelou Marcela.

João Anacleto morreu com um tiro no peito meia hora depois. Pouco lembrava o homem que decidira o seu destino em Palomas. O cabelo era uma imensa geada. O rosto, uma terra abandonada. Ao cair, sem esboçar resistência ou surpresa, fez a sua última frase.

– Agora é que começa a grande viagem para o sul.

Marcela e Pedro Fischer desceram do trem em Palomas num dia pálido e triste. Era um 4 de julho. O céu estava muito azul, melancolicamente azul. Diante da capelinha, Fischer benzeu-se. Entraram no bolicho de Juan Dahlmann quando o trem apitou no Alto Grande e o cachorro uivou em resposta. A miséria parecia ter completado o seu avanço. O bolicheiro bebia a sua cachaça com gestos tão lentos que não pareciam verdadeiros. Pousou os olhos no rosto da mulher. Depois, percorreu todo o corpo dela com uma expressão de nostalgia. Ela retirou o baralho das mãos dele. Sentou-se na pequena mesa de jogo em frente a Pedro Fischer. Embaralhou. O gato preto com um patinha branca saltou para o balcão. Na mesinha, os bibelôs eram dois cacos amontoados. Pela janela, via-se uma nuvem-elefante.

– Se eu perder, serei sua enquanto quiser – disse.

– E se ganhar?

– Cumpra o prometido.

Fischer recebeu uma dama de copas e um valete de espadas. Como terceira carta, um ás de ouro. Marcela exibiu um sorriso mortal.

– Nove pontos.

Um livro caiu aos pés do bolicheiro. Uma nesga laranja anunciava o crepúsculo. Juan Dahlmann foi castrado meia hora depois.

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