O mais longo abril

O mais longo abril

Da minha janela vi o mês passar

publicidade

      A natureza segue o seu curso indiferente aos nossos sentimentos. Vi, da minha janela, neste mês de abril, o mais longo da minha vida, talvez os mais belos crepúsculos da minha existência. Foram dias ensolarados e de finais de tarde faiscantes ou avermelhados. Como explicar esse contraste entre uma espécie de alegria da natureza e nosso desespero como seres tão frágeis sendo dizimados por um inimigo invisível contra o qual não temos ainda remédio ou vacina? A nossa única defesa é a reação natural do próprio organismo. Ao doente resta esperar que a artilharia do seu corpo produza anticorpos suficientes.

 

      Vi da janela, em alguns momentos, o meu bairro vazio, as ruas abandonadas, um passante aqui, outro acolá, ainda assim, segundo soube, em número maior do que o aceitável. Vi o sol lamber o asfalto como um gato preguiçoso e altivo. Vi o vento estremecer folhas de árvores que contemplo por amor ao verde e culto ao natural. Vi a cidade cochilar por longas horas como se todos não passássemos de pontinhos brilhosos e efêmeros numa tela de um pintor impressionista esquecido. Vi o tempo escoar lentamente numa ampulheta imaginária. Ouvi ruídos que andavam apagados na grande cidade: pássaros e talvez até grilos. Ouvi, na madrugada, um morador de rua gritar que a vida sempre vence. Vi a manhã, a tarde e a noite sucederem-se sem pressa nem inquietação.

      Vi a beleza dos dias contrastando com a feiura da tragédia que nos assola. Vi o horizonte curvando-se por cima dos edifícios para, quem sabe, zombar das platitudes que se disseminaram nos últimos tempos horrorizando cientistas e bons observadores da natureza. Vi um pássaro de peito azul pousar no parapeito da minha janela e cantar como se fosse a sua última vez. Vi um idoso arrastar os pés ao longo de uma quadra deserta salpicada de folhas outonais na calçada. Vi uma criança solitária, seguida pelo pai, correr atrás de um cachorro amarelo. Ouvi o som das panelas repicando quando o presidente visitou Porto Alegre.

      Abril interminável, abril estranhamente afável, abril devastador, tudo ao mesmo tempo num tempo que se gostaria de esquecer e que será, contudo, inesquecível, não pelo sol, pelo vento fresco ou pelo canto dos pássaros, mas pelo que teve de sombrio, de amargo e de doloroso. Vi da minha janela, essa janela que para mim sempre significou iluminação, os sinais do medo: o hospital preparando-se para o pior. Abril esquisito de muito sol enquanto muitos esperavam a chuva do renascimento. Abril para ficar na memória, não nas lembranças, que, em princípio, são afetivas, afetuosas, plantas germinando no silêncio.

      Da minha janela eu vi o sol e me banhei de luz. Apesar de tudo, acreditei na vida a cada dia. Se os crepúsculos foram belos, cada amanhecer foi suave, fresco, amplo, esperançoso. Os primeiros raios de sol infiltravam-se trazendo a força da vida e a potência da renovação. Que maio, quase sempre belo, seja menos iluminado e mais iluminador.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895