O mecanismo, artefato ideológico

O mecanismo, artefato ideológico

publicidade

No final de semana, vi o belo show dos Ramil, no São Pedro, e a série da Netflix, do brasileiro José Padilha, “O mecanismo”. Fui ao show Casa Ramil pelo “regionalismo universal” desse pessoal de Pelotas e por gostar dessa ideia de família vivendo e criando em parceria. “O mecanismo”, sobre a Lava-Jato, eu vi por interesse jornalismo. Mal costurada, confusa, maniqueísta, simplória e desonesta, a série tem um único objetivo: conquistar o farto público antipetista à disposição. Não passo de um tijolo ideológico.

A ficção pode distorcer a realidade à vontade, mas pode ser cobrada por isso quando, ao mesmo tempo, finge reproduzir essa realidade. A trapaça para obter audiência tem preço. Padilha comete quatro pecados capitais intencionais, ideológicos e mal-intencionados para cativar audiência: atribui ao personagem correspondente a Lula na série a frase terrível de Romero Juca sobre “estancar a sangria”, faz a corrupção investigada pela Lava Jato começar no governo de Lula e não no de Fernando Henrique Cardoso, coloca o doleiro Youssef no comitê de campanha de Dilma Rousseff e pinta o falecido ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos como uma figura sinistra que teria advogado para Yousseff. A ex-presidente Dilma odiou e emitiu nota criticando as falsificações ou fakanews do diretor.

Padilha acha que é “boboca” criticar a transferência da frase de Jucá para Lula. Mas para muita gente “boboca” é a série dele. Quem vê séries internacionais sabe que em poucos minutos se está dentro das histórias e que cada personagem faz sentido. Em “O mecanismo” não se sabe bem até o fim qual o papel de certos personagens que surgem repentinamente e da mesma forma desaparecem. Como quase todo filme brasileiro, não dispensa a exibição gratuita de uma bunda. Falta profundidade, contradição e densidade às figuras criadas por Padilha. Feito o balanço, é só mais uma narrativa MBL.

O resumo é monocromático: os bons contra os maus. O capitão Nascimento, de “Tropa de Elite”, volta como policial federal obsessivo. A série de Padilha não é ruim por criticar o PT, que de santo nada tem, mas por adulterar fatos para pesar a mão sobre um lado da história. Padilha não é ingênuo. Tenta ser esperto com a velha história conveniente de separar a realidade dos fatos quando está se escorando na primeira para fisgar e cativar um público. Ninguém verá o seu “mecanismo” como uma ficção pura e simples. Trata-se de um artefato político arremessado contra uma parte em busca de adesão fácil dos seus inimigos. Para que distorcer quando há fartura de verdades? Esperteza demais vira fake.

Imaginemos séries em que frases de uns passam para outros: Martin Luther King vira defensor da supremacia branca e diz que a igualdade racial é um pesadelo; Che Guevara defende o capitalismo e afirma que é preciso perder a ternura sempre; Churchill faz elogios a Hitler. Lula não é Martin Luther King, nem Che Guevara e muito menos Churchill? Obviamente. Por que, no entanto, é mais interessante para Padilha que seja Lula e não Romero Jucá a propor que se estanque a sangria do combate à corrupção? Como se diz nas redes sociais: “Padilha, você pode mais”. Ou não? O MBL com certeza aplaudirá. Padilha vai precisar ver muita série tipo House of Cards para aprender a fazer uma boa série política. O princípio é simples: tudo é permitido, menos a trapaça. O resto é racionalização.

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895