O nome da rosa e do livro

O nome da rosa e do livro

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Há dois sábados, convidado pela professora Léa Masina, falei para um público seleto sobre “O nome da rosa”, best-seller de Umberto Eco. Em meus mais de 40 anos de leitura, infiel a todos os gêneros, estilos e autores, li muitos livros do italiano Eco, de quem fiz o curso sobre a procura de uma língua perfeita no Colégio da França. Três livros de Eco me marcaram: “Apocalípticos e integrados”, “Viagem na irrealidade cotidiana” e “Os limites da interpretação”. Um quarto me impactou negativamente: “O pêndulo de Foucault”. Eco amava os livros e nos mostrou com orgulho sua biblioteca quando o visitamos em Milão. Eu também amo os livros. Mas estou convencido de que se trata de uma tecnologia do imaginário fadada ao desaparecimento. Foi a tecnologia de um tempo em que não se podia armazenar e transmitir dados com som e imagem em escala pessoal e industrial. Já não é assim.

Em “O nome da rosa”, Eco, por meio dos seus personagens, faz declarações de amor aos livros. O mestre Guilherme de Baskerville sugere ao discípulo Adso que para saber o que diz um livro às vezes é preciso ler outros. Explica: “Às vezes pode-se proceder assim. Frequentemente os livros falam de outros livros. Frequentemente um livro inócuo é como uma semente, que florescerá num livro perigoso, ou, ao contrário, é o fruto doce de uma raiz amarga. Não poderia, lendo Alberto, saber o que poderia ter dito Tomás? Ou lendo Tomás saber o que tinha dito Averroes?” O aprendiz se surpreende: “Até então pensara que todo livro falasse das coisas, humanas ou divinas, que estão fora dos livros. Percebia agora que não raro os livros falam de livros, ou seja, é como se falassem entre si”. Livros formam redes.

Romance policial erudito, sem deixar de ser entretenimento na indústria cultural, “O nome da rosa” reflete sobre a natureza dos crimes. O mestre ensina: “Porque em todo crime cometido para possuir um objeto, a natureza do objeto deveria nos fornecer uma ideia, ainda que pálida, da natureza do assassino. Caso mate por um punhado de ouro, o assassino será pessoa ávida, se, por um livro, estará ansioso por guardar para si os segredos daquele livro. É preciso portanto saber o que diz o livro que não temos”. Se não for assassinato, mas corrupção, qual a natureza do criminoso? Se o crime for um tríplex ou um sítio o que dizer sobre o acusado?  E se for uma mala de dinheiro?

O romance de Umberto Eco é sobre a verdade e a prova. Em “Os limites da interpretação”, Eco sustentará que muitas interpretações de um texto são possíveis, mas não todas, não qualquer uma. Em “O nome da rosa”, Baskerville afirma que muitas vezes os inquisidores produzem os hereges. Ele se vê diferente do inquisidor Bernardo Gui, que tem teses prontas e procura por todos os meios a prova do que já estabeleceu como verdade por antecipação. Baskerville se declara mais interessado nas sutilezas da prova e da verdade possível. A grande lição é esta: “Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade”. Isso não significa aceitar a mentira. Significa ser cauteloso quando existe conflito de posições.

Como pós-moderno, já fui mais relativista. Hoje, vejo a própria pós-modernidade como um tribunal que desconfia das verdades apresentadas como definitivas. O pós-moderno não nega a existência de verdades. Questiona as provas apresentadas por alguém para assegurar a irrefutabilidade de certa “verdade”. O pós-moderno é cético. Raciocina assim: Joesley pede a Michel um nome com quem tratar de assuntos dos seus interesses. Michel indica Loures. Joesley mantém contato com o indicado. Manda entregar a ele uma mala de dinheiro. Descoberta a trama, Loures devolve o dinheiro à polícia. Na lógica de Bernardo Gui não há dúvida: o dinheiro era para Temer. Na de Baskerville, falta a prova material. O dinheiro não chegou ao provável destino. O mesmo se aplica ao tríplex. Tudo indica que era para Lula. Mas não há prova material. Na lógica de Sérgio Moro essa é a prova ou não haveria lavagem. Na lógica do pós-moderno medieval Baskerville falta algo.

O quê? A prova cabal. Especialistas salientam que na corrupção passiva não precisa se ter recebido a vantagem. Basta que exista a promessa de concedê-la. Continua sendo necessário provar que houve a promessa e a aceitação ou a demanda do “benefício”. O grande embate no imaginário medieval abordado por Eco era entre a prova lógica e a prova factual. Algo pode ser lógico e não ter acontecido. Pode ser lógico e ter acontecido. Resta provar que aconteceu. Voltamos ao debate medieval sobre a natureza da prova. A paixão insana dos brasileiros pela verdade tem revelado as nossas mentiras. A prova sempre vem antes dos fatos. A sentença de 218 páginas de Moro condenando Lula saiu por volta do meio-dia. Horas depois, dizia-se:

– Eu li a sentença completa. É impecável.

Ou, ao contrário, afirmava-se categoricamente:

– Eu li toda a sentença. Não apresenta qualquer prova.

O ocaso de Temer e de Lula, a melancolia dos donos do poder, está no fato de que só podem se proteger da lógica com o argumento da falta de provas materiais.

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