O país das polêmicas essenciais

O país das polêmicas essenciais

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 É sabido que não existe França sem polêmica.

Faz parte do charme nacional francês tanto quanto os queijos, os vinhos, os perfumes, o confit de canard e o foie gras.

A característica principal da polêmica francesa é a seriedade que envolve as disputas.

Cada capítulo é acompanhado pelos interessados como se fosse o final de uma novela ou de um campeonato importante. Evidentemente que quase ninguém fica indiferente ao debate. É preciso assumir posição, argumentar e botar lenha na fogueira em nome da consciência política.

Cada estação do ano tem a sua polêmica. Este final de inverno francês tem duas igualmente virulentas: a violência estatal, em função do estupro de um jovem por um policial, e a afirmação do candidato a presidente da República Emmanuel Macron sobre o colonialismo, considerado por ele como um crime contra a humanidade. Por colonialismo, no caso, deve-se entender o domínio francês na Argélia. Pegou fogo. Há três tipos de indignados: todos aqueles que não aceitam colocar qualquer situação em equivalência com o holocausto; os chamados franceses da Argélia; e os adversários de Macron na corrida presidencial. Uma das respostas a ele diz que crimes contra a humanidade foram o holocausto e a escravidão negra.

O Brasil aparece então como o país que praticou crime contra a humanidade ao longo de quase 400 anos. Um recorde. Os donos de escravos, depois da abolição, ainda apresentaram projeto no parlamento pedindo indenização. Deveriam ter pago indenização pelo que fizeram. Se no Brasil o tema passa batido, na França uma questão se impõe: se o colonialismo francês, como os demais, caracteriza crime contra a humanidade, o que se deve fazer? Não é possível que algo possa ser considerado verdade sem que se produzam consequências. O primeiro reflexo da controvertida declaração de Macron foi que ele caiu nas pesquisas de opinião para as eleições de abril e maio. Foi ultrapassado pelo candidato da direita, o ex-primeiro-ministro François Fillon, que havia despencado por causa do “penelopegate”, o escândalo envolvendo o emprego fantasma da sua mulher. Elucidativo.

Parece que os franceses toleram mais o nepotismo e a apropriação de dinheiro público do que a crítica ao seu passado ainda muito recente e incômodo. Macron lembra bastante João Dória. Apresenta-se como não sendo de esquerda nem de direita. Deve ser um dos únicos casos no mundo de filósofo banqueiro ou de banqueiro filósofo.

Os franceses são estranhos: exigem que a polícia respeite direitos humanos, brigam pela história do país na sua relação com o conceito de humanidade e insistem que o Estado deve servir para produzir justiça social em nome do imperativo da dignidade de todos.

Essas polêmicas começam a encontrar uma barreira: o medo. A candidata de extrema-direita Marine Le Pen lidera as pesquisas. Está cada vez mais difícil tirá-la do segundo turno. Os franceses andam com uma pergunta na ponta da língua: o caso Trump vai se repetir? Marine no segundo turno provocará um efeito curioso: a taxa de abstenção cairá. Preguiçosos sairão de casa para salvar a democracia. O medo costuma alterar o resultado eleitoral em certos países.

Outro ponto que chama a atenção: os discursos de Marine Le Pen (extrema-direita) e de Mélanchon (extrema-esquerda) se confundem: ambos são contra a Europa e a favor de um retorno às nostálgicas fronteiras da "petite France".

O mundo é pequeno. Tudo gira. A história jamais acaba.

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